Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

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29.12.24

Imponderável

O que se passa nos escapa e o Imponderável se anuncia aos solavancos. Quando habitava minha cidade natal, já cultivava certo olhar estrangeiro. Tudo já estava lá, ainda que turvo: a truculência, a interpretação de um Deus vesgo e a marcha crescente e indiscreta em transformar delinquentes em heróis. Pelo local ser curto e as pessoas serem obrigadas a se aguentar, ódios e amores se misturam, tornando as relações opacas, desviantes, suportáveis apenas com doses maciças de álcool e hipocrisia. Por viverem sempre à espreita do olhar de outrem, estão sempre querendo mostrar opulência, ostentando um sorriso amarelo e um suposto bem-estar oriundo da Família, valor que ninguém julga, todos cultuam e carregam, de algum modo, certa sequela. A insistente obrigação em ostentar, vício social degenerado em ganância, torna todos endividados uns dos outros, e quem controla as dívidas, descontrola a vida. Os jovens, abstinentes de virtude, procuram ressonâncias nos tolos que melhor aparentam alguma suposta vitória, na verdade, apenas uma atuação sofrível que tangencia com falsa elegância a tragédia. Tragédia do social que apodrece diante dos suspiros de quem percebe a queda e finge pra si mesmo que a vertigem se cura com comprimidos; vigilância que perde dia a dia a eficácia da precisão. Voltar meu olhar ainda mais estrangeiro pra cá constata a triste confirmação de que a deterioração se acelera, que o caos e a tragédia dançam triunfantes perante desgovernados por monarcas moribundos, viciados em extorquir. A minha solitária jornada em diagnosticar a peste que é cultivada como um bem se torna surda-muda, encontrando ecos em apenas uns breves momentos de lucidez, que se apagam na próxima torção de uma ética perdida. Tento voltar minha tênue esperança pros que almejam algum além e constato que suas ferramentas são, provavelmente, insuficientes. A cidade se mostra habitada por fantasmas que se condenam a perpetuar ao infinito a mesma tragédia. A tragédia se torna evidente quando o Imponderável emerge, como a morte estúpida de um jovem de afetos selvagens, que já anunciava há muito seu destino sinuoso. A cidade assiste os urros da mãe com a mesma dor com que a ignorância se instala nos hábitos duros de cada um. Vão novamente clamar a um Deus-pai que nunca possui credibilidade. Mais uma vez, percebo que se sussurra um convite sutil a habitar outros platôs, e mais uma vez, vejo essa vertigem passar por eles e ser ignorada, não por incapacidade, mas pelo império do mesmo, por preguiça existencial, em verdade, a única doença que, de fato, existe. Aqui, me resta alertar aos ouvidos que possam realmente escutar esse choro, e crer que esse esforço possa servir pra alguém levantar uma sobrancelha diante do circo de horrores e ao menos desviar em algum grau seu caminho rumo a alguma Alegria possível.

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