A
mais intensa tempestade. Não havia para onde fugir, nem lugar que já não fosse
ruína. Corro, corro, corro e apenas encontro tempestade. Não tenho mais fôlego,
energia, esperança.
Acordo. Suor por todo o corpo,
travesseiro, lençol. Coração de explosão em explosão. Da janela, nuvens escuras
conectam meu pesadelo à vida. Enquanto faço o café, a TV pára a programação
para me avisar da Anomalia. Mudo os canais e todos falam dela. Descubro que ela
pode ser vista a olho nu. Corro pra janela e procuro o sol, que ostentava uma
rara timidez. Ao seu lado, lá estava: uma mancha branca, mas com tons de cores
estranhas em torno, com leves traços dessas cores em seu interior. Tão terrível
quanto fascinante, hipnótica, até.
Na internet, vou atrás dos
desígnios da ciência. A hipótese que parece mais consistente, segunda a NASA, é
que seja um tipo de buraco negro que se avizinha à nossa galáxia. Se isto for
correto, vamos ser sugados a qualquer momento e nada mais vai existir.
Toca o celular. Minha astróloga
desmarca a consulta e disse que vai “esperar” a Anomalia chegar. Em sua
interpretação, a Anomalia é a verdadeira avatar da Nova Era. OK.
Desço do apartamento, deveria
ir pra natação, como de costume. Mas vi que o porteiro não estava mais lá,
alguns moradores se amontoavam, discutindo a Anomalia, quando os primeiros
corpos começaram a cair entre nós: a senhora viúva do quinto andar, o
adolescente emo, alguns que eu não consegui identificar. A Anomalia começou a
gerar uma onda de suicídio em massa no mundo. Maior até que no fim dos Smiths.
Um estrondo. Chega o carteiro
correndo, avisando que o mercado próximo está sofrendo um arrastão. Entendendo
a situação, pego algumas roupas e comida, vou pro carro e rumo para o meu
sítio. Ele está abandonado há muitos meses, mas deve ser melhor um caos distante
que habitar o caos total.
A estrada esta muito
congestionada na saída da cidade, mas depois muitas pessoas desistiam,
começavam a andar a esmo, abandonavam os carros. Muitas batidas, várias delas
propositais. Esbarravam em meu carro várias vezes, consegui chegar no sítio
depois de cerca de sete horas. Tudo empoeirado, o caseiro esporádico passou por
lá quando soube da minha presença. Disse que todos iriam pra igreja à noite, me
convidou: iriam rezar pra que a Anomalia “fosse embora”. Agradeci e olhei pra
ela. À noite seu brilho era mais intenso, nessas poucas horas, ela aumentou de
tamanho, de urgência.
No rádio, ouço que o caos
mundial se intensifica. Desligo. Faço um sanduíche, que saborei lentamente, como se fosse (talvez de fato fosse) o último. Deito na rede e contemplo a Anomalia. Meus sentimentos
são paradoxais. É uma ameaça? Parece que sim. Mas de uma estranha forma, eu
desejo a Anomalia.
Não sei bem quanto tempo se
passou, mas já é de madrugada. Ao longe ouço orações em conjunto. No céu, a
Anomalia cada vez maior. Vou quase automaticamente pro meu cantinho da
meditação. Acendo o incenso, fico em posição de lótus, fecho os olhos, inspiro expiro...
Nunca a meditação foi tão
intensa e intuo que a presença da Anomalia influencia isso também. Sinto todo o
meu corpo, todo o sítio, todo o desespero e incompreensão da humanidade em
relação à Anomalia, sinto o absurdo cósmico. E então, aconteceu algo inédito.
Vi-me em uma penumbra, onde
entidades conversavam. Fui chegando perto dos seis e reconheço, penso eu, alguns
deles: Lúcifer, o Demiurgo e Hitler:
- Nossa chance de dominar, eles
estão distraídos.
- Não seja tolo, Adolf. A
Anomalia é algo que nós não entendemos. Eu estou completamente perdido. Nunca
me senti assim desde A Queda.
- Merda, Lúcifer! O que você
sugere?
- Vamos ao encontro de todos.
- O quê?????
- Sinto uma centelha se
aproximando...
Todos me olham, eu não sei o
que fazer. Lúcifer se pronuncia:
- Ignore-o, Demiurgo, temos
que nos decidir agora.
- Nunca vão nos receber,
imagine eu, no Pleroma...
- Não temos como saber, mas
vamos. Rumo, finalmente, de volta ao Reino dos Céus...
Fui indo meio de lado, junto a
eles. Começaram a caminhar, mas na verdade, não era bem “deslocamento” o que
acontecia, e sim, uma mudança nos ares, que se tornavam mais claros e lá, muitas
outras entidades estavam. O ambiente era de paz, mas a tranquilidade que talvez
fosse costumeira não estava mais lá. Todos falavam e estavam exasperados. Ao
verem aquelas entidades sombrias chegando no ambiente, repentinamente todos se
calaram. Ao longe, vi uma figura que poderia ser tanto Lóki quanto o Coringa, arquinimigo
do Batman, rindo muito da situação. O que vi a seguir foi incomensurável e à
medida que percebia os fatos, entendia que as imagens eram, sobretudo,
vibrações e que as vibrações de cada um se misturavam à dos outros e de todo o
ambiente, inclusive a minha própria vibração se compunha com a do coletivo. Não
havia mais uma clareza das dimensões espaciais e temporais, mas vibrações em
que tudo isso fica misturado, explícito e além.
Uma voz falou em minha cabeça:
- Acalme-se, junta-se a nós.
Era Sidarta Gautama. Achei
natural, visto que simpatizava com o Budismo. Sentei junto a ele e a algumas
figuras: uma eu achava (juro!) que era um cavaleiro jedi de outro planeta, e o outro,
bem que poderia ser Debussy.
Aquele, era, sem dúvida, Cristo.
Levantou-se, foi caminhando calmamente em direção à Lúcifer. Entreolharam-se
durante alguns segundos em silêncio e então Cristo o abraçou:
- Que bom que você retornou,
irmão.
Cristo dizia “irmão” em nossas
mentes soando bíblico e como gíria de rap ao mesmo tempo. Lúcifer hesitou, mas
acabou abraçando Cristo, de forma um tanto engessada e disse, envergonhado:
- Você e esse seu perdão insuportável...
Ao lado de Cristo estava
Sophia, que apenas sorriu para o Demiurgo, que a olhava de forma em que se
percebia claramente uma paixão platônica por parte dele. Estavam todos juntos.
Em um círculo maior, Odin e Zeus estavam lado a lado, conversando com Cristo,
Einstein e Lao Tsé:
- Não conseguimos entender, não
sabemos o que é. Alguém se pronuncia?
Sidarta saiu de nosso círculo e
se uniu a Dionísio, Thoth, Heráclito, Turner e alguns outros. Disseram:
- A mudança avança como nunca.
Não podemos contê-la, não podemos impedí-la. Tudo que é deixará de ser, o que
pós-será, não sabemos.
A Anomalia estava grande como
nunca, dava pra sentir a instabilidade se esgueirando e lentamente tomando conta
de tudo.
Cristo, então, bradou:
- Vamos recorrer ao Meu Pai.
Um alvoroço tomou conta de
todos. Mas uma intensa ressonância começou a fazer parte de todos ali. Alguns
entendiam como Deus, Alá, ou simplesmente Inteligência Suprema. Mas ali, todos
éramos Um, quando nossas vibrações se tornaram apenas uma, compreensão cósmica.
Não eram palavras, não tinha som, nem imagem, era um saber cósmico que
penetrava em nosso âmago:
- Estamos mudando. Podemos
entender a Anomalia como um câncer em nós, o que não parece ser prudente. É um
outro estado. Uma novidade de como se apresenta o curso. Vamos apreender, vamos
anomalizar...
Ou algo assim. A Anomalia vem
vindo. Não há nada na Existência que a entenda, ou sabe o que vem “depois”, se
é que esse termo ainda tem algum valor. A Anomalia começou a entrar em tudo e
tudo se esvai, percebo apenas um redemoinho de sensações e quase percepções
enquanto ela se expande em nós:
receio paixão
redenção deslumbre
medo
torpor transcendência impermanência
devir amor
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