Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

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31.1.13

Anomalia



 A mais intensa tempestade. Não havia para onde fugir, nem lugar que já não fosse ruína. Corro, corro, corro e apenas encontro tempestade. Não tenho mais fôlego, energia, esperança.

Acordo. Suor por todo o corpo, travesseiro, lençol. Coração de explosão em explosão. Da janela, nuvens escuras conectam meu pesadelo à vida. Enquanto faço o café, a TV pára a programação para me avisar da Anomalia. Mudo os canais e todos falam dela. Descubro que ela pode ser vista a olho nu. Corro pra janela e procuro o sol, que ostentava uma rara timidez. Ao seu lado, lá estava: uma mancha branca, mas com tons de cores estranhas em torno, com leves traços dessas cores em seu interior. Tão terrível quanto fascinante, hipnótica, até.

Na internet, vou atrás dos desígnios da ciência. A hipótese que parece mais consistente, segunda a NASA, é que seja um tipo de buraco negro que se avizinha à nossa galáxia. Se isto for correto, vamos ser sugados a qualquer momento e nada mais vai existir.

Toca o celular. Minha astróloga desmarca a consulta e disse que vai “esperar” a Anomalia chegar. Em sua interpretação, a Anomalia é a verdadeira avatar da Nova Era. OK.

Desço do apartamento, deveria ir pra natação, como de costume. Mas vi que o porteiro não estava mais lá, alguns moradores se amontoavam, discutindo a Anomalia, quando os primeiros corpos começaram a cair entre nós: a senhora viúva do quinto andar, o adolescente emo, alguns que eu não consegui identificar. A Anomalia começou a gerar uma onda de suicídio em massa no mundo. Maior até que no fim dos Smiths.

Um estrondo. Chega o carteiro correndo, avisando que o mercado próximo está sofrendo um arrastão. Entendendo a situação, pego algumas roupas e comida, vou pro carro e rumo para o meu sítio. Ele está abandonado há muitos meses, mas deve ser melhor um caos distante que habitar o caos total.

A estrada esta muito congestionada na saída da cidade, mas depois muitas pessoas desistiam, começavam a andar a esmo, abandonavam os carros. Muitas batidas, várias delas propositais. Esbarravam em meu carro várias vezes, consegui chegar no sítio depois de cerca de sete horas. Tudo empoeirado, o caseiro esporádico passou por lá quando soube da minha presença. Disse que todos iriam pra igreja à noite, me convidou: iriam rezar pra que a Anomalia “fosse embora”. Agradeci e olhei pra ela. À noite seu brilho era mais intenso, nessas poucas horas, ela aumentou de tamanho, de urgência.

No rádio, ouço que o caos mundial se intensifica. Desligo. Faço um sanduíche, que saborei lentamente, como se fosse (talvez de fato fosse) o último. Deito na rede e contemplo a Anomalia. Meus sentimentos são paradoxais. É uma ameaça? Parece que sim. Mas de uma estranha forma, eu desejo a Anomalia.

Não sei bem quanto tempo se passou, mas já é de madrugada. Ao longe ouço orações em conjunto. No céu, a Anomalia cada vez maior. Vou quase automaticamente pro meu cantinho da meditação. Acendo o incenso, fico em posição de lótus, fecho os olhos, inspiro expiro...

Nunca a meditação foi tão intensa e intuo que a presença da Anomalia influencia isso também. Sinto todo o meu corpo, todo o sítio, todo o desespero e incompreensão da humanidade em relação à Anomalia, sinto o absurdo cósmico. E então, aconteceu algo inédito.

Vi-me em uma penumbra, onde entidades conversavam. Fui chegando perto dos seis e reconheço, penso eu, alguns deles: Lúcifer, o Demiurgo e Hitler:
- Nossa chance de dominar, eles estão distraídos.

- Não seja tolo, Adolf. A Anomalia é algo que nós não entendemos. Eu estou completamente perdido. Nunca me senti assim desde A Queda.
- Merda, Lúcifer! O que você sugere?
- Vamos ao encontro de todos.
- O quê?????
- Sinto uma centelha se aproximando...
Todos me olham, eu não sei o que fazer. Lúcifer se pronuncia:
-  Ignore-o, Demiurgo, temos que nos decidir agora.
- Nunca vão nos receber, imagine eu, no Pleroma...
- Não temos como saber, mas vamos. Rumo, finalmente, de volta ao Reino dos Céus...

Fui indo meio de lado, junto a eles. Começaram a caminhar, mas na verdade, não era bem “deslocamento” o que acontecia, e sim, uma mudança nos ares, que se tornavam mais claros e lá, muitas outras entidades estavam. O ambiente era de paz, mas a tranquilidade que talvez fosse costumeira não estava mais lá. Todos falavam e estavam exasperados. Ao verem aquelas entidades sombrias chegando no ambiente, repentinamente todos se calaram. Ao longe, vi uma figura que poderia ser tanto Lóki quanto o Coringa, arquinimigo do Batman, rindo muito da situação. O que vi a seguir foi incomensurável e à medida que percebia os fatos, entendia que as imagens eram, sobretudo, vibrações e que as vibrações de cada um se misturavam à dos outros e de todo o ambiente, inclusive a minha própria vibração se compunha com a do coletivo. Não havia mais uma clareza das dimensões espaciais e temporais, mas vibrações em que tudo isso fica misturado, explícito e além.

Uma voz falou em minha cabeça:
- Acalme-se, junta-se a nós.

Era Sidarta Gautama. Achei natural, visto que simpatizava com o Budismo. Sentei junto a ele e a algumas figuras: uma eu achava (juro!) que era um cavaleiro jedi de outro planeta, e o outro, bem que poderia ser Debussy.

Aquele, era, sem dúvida, Cristo. Levantou-se, foi caminhando calmamente em direção à Lúcifer. Entreolharam-se durante alguns segundos em silêncio e então Cristo o abraçou:
- Que bom que você retornou, irmão.

Cristo dizia “irmão” em nossas mentes soando bíblico e como gíria de rap ao mesmo tempo. Lúcifer hesitou, mas acabou abraçando Cristo, de forma um tanto engessada e disse, envergonhado:
- Você e esse seu perdão insuportável...

Ao lado de Cristo estava Sophia, que apenas sorriu para o Demiurgo, que a olhava de forma em que se percebia claramente uma paixão platônica por parte dele. Estavam todos juntos. Em um círculo maior, Odin e Zeus estavam lado a lado, conversando com Cristo, Einstein e Lao Tsé:
- Não conseguimos entender, não sabemos o que é. Alguém se pronuncia?

Sidarta saiu de nosso círculo e se uniu a Dionísio, Thoth, Heráclito, Turner e alguns outros. Disseram:
- A mudança avança como nunca. Não podemos contê-la, não podemos impedí-la. Tudo que é deixará de ser, o que pós-será, não sabemos.

A Anomalia estava grande como nunca, dava pra sentir a instabilidade se esgueirando e lentamente tomando conta de tudo.

Cristo, então, bradou:
- Vamos recorrer ao Meu Pai.

Um alvoroço tomou conta de todos. Mas uma intensa ressonância começou a fazer parte de todos ali. Alguns entendiam como Deus, Alá, ou simplesmente Inteligência Suprema. Mas ali, todos éramos Um, quando nossas vibrações se tornaram apenas uma, compreensão cósmica. Não eram palavras, não tinha som, nem imagem, era um saber cósmico que penetrava em nosso âmago:
- Estamos mudando. Podemos entender a Anomalia como um câncer em nós, o que não parece ser prudente. É um outro estado. Uma novidade de como se apresenta o curso. Vamos apreender, vamos anomalizar...

Ou algo assim. A Anomalia vem vindo. Não há nada na Existência que a entenda, ou sabe o que vem “depois”, se é que esse termo ainda tem algum valor. A Anomalia começou a entrar em tudo e tudo se esvai, percebo apenas um redemoinho de sensações e quase percepções enquanto ela se expande em nós:

        receio                                             paixão


                               redenção                                            deslumbre

                                                     medo

 torpor                            transcendência                                                 impermanência

                                                                 devir                                               amor                                    

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