Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

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2.2.13

As Facilidades que me são Impossíveis

 "O cartaz 'Cuidado com o cão' vai ficar dependurado permanentemente na minha porta.
 Mas vou tentar ser um animal correto e, 
se você jogar um osso com bastante carne, posso até lamber a sua mão."
F. S. Fitzgerald


Isso não é um desabafo, não sou desse tipinho. O que eu digo aqui é apenas uma constatação. Lembre-se que eu não pedi pra você ler.

Ser maldito seria muito fácil. Teria alguém pra dizer na minha cara que eu não presto, não sou confiável, que eu, de alguma forma mais relevante, não valho a pena. Não é bem isso o que acontece. Minha passagem pelo mundo até afeta as pessoas, mas elas se aproximam em determinados momentos, em crises. A normalidade e o instituído tendem a me ignorar, a criar uma teia de acontecimentos em que eu estou necessariamente fora, pois não consigo pertencer a isso. O instituído e eu nos expulsamos por definição, eu fracasso ao lidar com o instituído, por outro lado, o instituído imprime regras em que se sabe que eu não seguirei e, portanto, não pertencerei. Muito me assombra como as pessoas conseguem habitar as convenções e esperar felicidades em suas vidas. Os momentos de alegria envolvem certa novidade corpórea que a convenção nunca vai poder oferecer, a não ser o sorriso amarelado nas redes sociais. Por isso, minhas alegrias, quanto mais intensas elas são, mais por anônimas elas passam. O prazer de viver se dá fora das convenções, estas apenas imprimem um sorriso cansado para se dormir tranquilo, a calmaria palerma do débito automático. Então, por mais que eu berre essas coisas, vou ficar invisível, não através de proibição, mas por ser incompatível com a “sensibilidade” da continuidade militaresca das convenções.

Também seria muito fácil enlouquecer, ao contrário do que normalmente se diz. Para enlouquecer é preciso uma simples, mas poderosa decisão: “não vou fazer nada do que eles querem e se eles me obrigarem, eu quebro a casa ou densifico meu pensamento a ponto de 'ouvir vozes' em minha cabeça. Se eles me doparem, ou darem choque etc, tanto melhor, terei mais motivos e, principalmente, desculpas pra não fazer o que eles querem”. A indústria perversa dos familiares culpados vai dar dinheiro para os farmacêuticos espertos e “psis” de toda a espécie, para apenas fazer a manutenção dessa escolha original do “louco”. Tadinho, né? A minha escolha é outra, muito mais interessante e difícil, penso eu: vou ser o que eu sou a cada momento, mesmo que isso me leve a deixar de ser (e tomara que assim seja!) o que eu era. Não, isso não tem nada a ver com a loucura. Isso é apenas como as coisas de fato funcionam quando não estão sob o jugo das convenções. Sempre vai haver a desculpa da “sociedade civil”, esse tipo de besteira. A sociedade deveria aprender a se auto organizar. Por favor, não diga que isso é impossível, pois as formigas, abelhas, pássaros, juntos com o próprio planeta, já possuem esse PhD há milhões de anos, nós é que nos desligamos deles “precisando” das leis. O animal em mim é muito mais inteligente que a mecanicidade alheia em permitir que a jornada da vida seja guiada por semáforos quaisquer.

Claro que sempre há a amizade e o amor. A amizade pode ser destruída pela quase insuportabilidade dos afetos que passam por ela. O amigo não é só aquele que acolhe seus segredos e diversões, mas aquele cujo afeto se perpetua nas suas singularidades mais estranhas, ainda que tenha que (de preferências, mas existem tolerâncias) abrigar esses afetos em uma espécie de ética da amizade: nada a ver com convenções e sim com o artesanato de relações construtivas ao longo do tempo. Óbvio também que o amor passa muito por essas características, mas o amor romântico tem o plus demoníaco (“para além do bem e do mal”, como diria Fred, O Bigodudo) com o prazer sexual. Todo o problema do amor & sexo deriva das condições de prazer serem, muitas vezes, excludentes: ela goza com a minha busca constante por ela, eu gozo com o cultivo de nosso pertencimento mútuo. Esse tipo de incompatibilidade é às vezes tolo, pois seria possível uma complementaridade entre tais prazeres (com todo o risco de se tornar uma complementaridade opaca...), mas a construção de uma inteligência coletiva do casal - em que não haveria mais "condições" de prazer - é um processo que tende a sofrer boicotes das convenções mais próximas e sacanas: família, prosperidade, segurança...

Fico pensando, sim, nas crianças. Como um casal neurótico pode criar uma criatura plena? A resposta é óbvia: não pode. Temos muita vergonha de aprender com os índios: os filhos são, de fato, filhos da tribo e eles escolhem seus pais. Paternidade biológica é tolice, chauvinismo genético. Mas é aí que tudo começa: é negado às crianças a escolha de pertencer. Não digo que seja fácil. As facilidades geralmente nos são negadas quando saímos da convenção, mas apenas pra criar uma inteligência cósmica. Se eu tivesse que cuidar o tempo todo de uma criança, jamais poderia ter disposição de aprender com elas, de rir, não de suas gracinhas (essa mania infantil de imprimir infantilidade na criança), mas de seu olhar único, sem vícios de signos e semântica, para o cosmos. Jamais poderia brincar, não infantilmente, mas com a minha criança interior e a sua correspondente exterior.

Assim, eu sigo, quase invisível, quase anônimo. Se você topar comigo um dia desses e me perguntar “e aí, tudo bem?” e eu estiver minimamente provocativo, vou te responder que “tudo bem é uma utopia” ou algo assim. Você pode se ofender, eu vou apenas rir, sim, da sua cara mesmo. Ou a gente pode caminhar junto por alguns metros e respirar uníssono a mais esplêndida acontecência.






4 comentários:

Juli Mariano disse...

Nossa! texto lido em um fôlego só. Do tipo que faz pensar, faz rir, faz gostar de ser e de estar.
Grifo para a frase: "A amizade pode ser destruída pela quase insuportabilidade dos afetos que passam por ela."

Nenhuma palavra desperdiçada!

Clap! Clap! Clap!

Beijo Nelson

Nelson Job disse...

Muito obrigado, Juli! A vantagem do conto curto é que vamos diretíssimo ao assunto...

Virginia disse...

Priemiro encontro com texto do druam, mas... eu o conheço de tempos imemoriais?... estranhamente familiar esse mundo que aparece quando escorro e fujo pelas frestas das "cenas oficiais"... Keep walking, Druam...

Nelson Job disse...

Caminhemos, pois: a walk on the wild side...