Tô
nessa cama da clínica, eles colocam a injeção de anestesia e me pedem pra
contar de 100 para trás... o que é isso meudeusdocéu... tô vendo a minha vida
inteira pela minha frente, agora sim, tá claro como eu vim parar aqui...
Quando
eu tenho que arrasar, ponho um vestido vermelho. Bem
decotado. Fui convidada pro casamento dele.
Seu merdinha, tá casando... Pensei que isso nunca iria acontecer, ele dizendo
que não pensava em “coabitar” (olha a palavrinha mais metida a besta, típico!) com
ninguém... Bom, vou fazer com que ele se arrependa na festa de casamento. Mas
aí, ele diz “sim” pra noiva, sinto uma pequena vontade de morrer.
Na festa, olho pros convidados.
As feias, de costume, me cumprimentam com aquele olhar de inveja educadamente
disfarçado. Mas, na verdade, o meu decote não funciona mais pros bonitões como antigamente.
Encontro minhas “amigas”. Vamos, como sempre, conversar sobre as novidades da
literatura, da “universalidade” de Proust, da “profundidade” de Ponge, do “hermetismo”
de Joyce; assim a gente se sente importante por alguns minutos. Vou "perdoar" todas as suas diárias pequenas traições - cometidas pelas nossas mais frívolas
vaidades - e elas, as minhas. Nosso perdão é uma contingência social, apenas
pra poder pertencer.
Aí ele chega, com aquela “menina” insuportável. Ele me olha suavemente
nos olhos. Não tem ternura, nem desejo. Ele até olha pro meu decote, mas, pela
primeira vez, não identifico nenhum tesãozinho da parte dele. Seu aproximar me
dá aquelas vertigens que eu finjo pra mim mesma já não existir há alguns anos.
Olho pra maneira com que a menina pousa a cabeça em seu ombro, apaixonada, os
olhos dele brilham de contentamento. Quando recebi o convite de casamento,
pensei comigo, você ainda vai me comer
muito, seu viadinho, de preferência na cama que ela dorme com você. Mas
agora me dei conta que não vai mais acontecer. Vou pro banheiro. Tranco a
porta. Tiro meu seio pra fora. Olho com horror a marca do tempo entre os
peitos. Não tinha reparado até então. Decido que vou fazer cirurgia plástica
semana que vem.
Largo o vinho e passo pro
uísque, sabendo que isso sempre dá alguma merda. Tento dançar com ele na festa, e o filhodeumagrandessíssimaputa,
é claro, me despista. Seduzo aquele babaca que sempre me azarou, o
publicitário. Mais tarde, no motel, com uma dor de cabeça apocalíptica, o lápis preto
borrado nos olhos e o esperma seco do babaca na minha coxa e barriga, vejo meu
reflexo no teto: sou o rascunho turvo de algum desenho que eu nunca sonhei.
99,
98, 97... a imagem do meu filho com 10 anos, tenho que lembrar desse momento
logo agora?
- Mamãe, porquê que você e o papai
tão brigando? Porquê? Ele falou que a culpa é sua. Porquê que eu tô chorando???
Eu quero vocês dois juntos!!!
Aos quatorze, meu filho praticamente
parou de falar comigo. Ele me culpa, mais ou menos com razão, da nossa família
ter se destroçado. Que meu marido tentou de tudo: me perdoar, fazer aquelas
minhas viagens excêntricas... fora o que ele não sabe e espero que nunca saiba. Eu dizia que o pai dele não é santo, mas isso não importava mais.
84,
83, 82... a enfermeira comenta as lágrimas no meu rosto, o doutor diz que é
normal, pra continuar com os procedimentos. Aí vem aquele momento com ele, quando a gente parou de se encontrar, não,
eu não quero lembrar, não disso, pelamordedeus!!!
A gente naquele restaurante, ai que saudade de quando a gente ia lá numa
boa, ele falando, não eu não quero
lembrar porra, não quero lembrar, ele dizia:
- VOCÊ NÃO...
por
favor não quero, não quero,
- VOCÊ NÃO TÁ...
chega,
chega, chega,
- VOCÊ NÃO TÁ SENDO...
pááááááraaaaaaaaaaa!!!!
76,
75, 74... já não era pra eu tá desacordada? Vou me lembrar de quando a gente
tava junto...
Eu o encontrava, as mãos dele pelo meu corpo, os rastros das nossas
peles se encontrando, era o suficiente pra me sentir em êxtase. Sempre exigi “recursos”
na alcova - ele não tinha lá tantos,
mas nunca precisou... Ouço sua voz melodiando meus ouvidos, as suas
compreensões tão precisas que chegava a me irritar e maravilhar ao mesmo
tempo. Depois do sexo - de acordo com suas queixas, aiaiai - eu imediatamente tentava me alienar com um olhar vazio pro teto. Era a
dor de estar ali e não saber quando iria voltar. Era a apreensão daquele prazer
inexplicável e do preço a se pagar por esse prazer que ele me proporcionava. Tentava matá-lo em mim, sabendo que
estava matando meu melhor pedaço. Ninguém deveria ter o direito de ser o melhor
pedaço de alguém.
(Doutor, doutor, ela não está
respondendo bem...
- Sim, parece alergia a anestesia, mas não entendo... os
exames...)
50,
49, 48... Meu psiquiatra, queria ele aqui agora...
- Ainda preciso repetir? Você NÃO
PODE misturar ansiolítico com uísque, já te falei um milhão de vezes...
44...
eu prometo, nunca mais...
(Doutor, acho que ela não vai
aguentar!)
41,
40, prometo, nem quero mais fazer essa merda dessa plástica, eu deveria ter
olhado ele nos olhos e... ai, meu
filho, me perdoa, por favor, não, num era pra ser assim, aiaiai queria tanto
mais uma...
33,
32, 31.
2 comentários:
Simplesmente genial....O que mais posso escrever diante do que li?
Estou ainda com a frase na minha frente "...sou o rascunho turvo de algum desenho que eu nunca sonhei."
Muitíssimo obrigado, Lili! Essa frase também me surpreendeu: foi uma grata surpresa, que não estava prevista e surgiu em pleno processo de escrita. Magias da literatura...
Postar um comentário