Conto inspirado pela imagem de Clarissa Leal:

veja a imagem original no blog Cla Leal
Nunca sei bem quando as coisas
começam. Acho que começou com aquele tratamento de homeopatia. Apareceram várias
reações: tive ao mesmo tempo todas as doenças que eu tive na vida. Lembro de
dor, sangue, desespero, enjoos, enxaquecas, estômago revirado... Fiquei muito
tempo de cama. Quase calado. A questão é que as mudanças, é claro, estavam
longe de serem apenas físicas. Foram emergindo forças inesperadas,
desejos inomináveis.
Quando fiquei melhor
fisicamente, as minhas relações não faziam sentido nenhum. Reconhecia meu
pai, minha mãe, minha irmã, mas apenas isso. Não identificava em mim mais
nenhum traço de pertencimento aquele convívio. Fui dar uma volta, encontrei um
amigo. Suas preocupações do tipo “ela não me ligou mais”, “acho que vou ser
demitido”, “vai chover no fim de semana” me pareceram tão sem sentido que me
despedi de forma abrupta, de forma que ele ficou notadamente ofendido. Foda-se.
Minha namorada (?), meu caso
(?), não sei bem mais, marcou um encontro comigo. Esbarravam algumas memórias
de como eu gostava do seu cheiro e da sua ternura brejeira, mas ali, eu não
sentia nada. Consegui reunir forças pra ser calmo e compreensivo quando disse
que nossa relação não fazia mais sentido. Talvez em outro momento eu tivesse vergonha
em dizer que não a abracei para “acolher seu pranto”.
Meu trabalho na vídeo locadora: não conseguia dar mais os risos
amarelos pros clientes, nem indicar filmes, mesmo sinceramente. Cheguei em casa e
comecei a traçar os planos de uma outra vida.
Fui para outro estado, com perdão do trocadilho. Os
primeiros dias foram interessantes, mas as semelhanças com tudo que vivi antes
começaram a transbordar e logo ficou claro que eu precisava mudar de país.
Viver em um lugar com outra
língua trouxe um impacto sereno. Mas os clichês do Ocidente se tornaram
explícitos depois de alguns meses, foi quando decidi ir para o Oriente. Lá
fiquei por alguns anos, depois fui assombrado pela... como chamarei... “natureza
humana”?
Fui viver na floresta, perto
das montanhas. A vida selvagem era deveras interessante: não havia hipocrisia,
nem palavra falada, embora houvesse uma diversidade de linguagens: dos ventos
que anunciavam as mudanças de clima, assim como a dos pássaros; das corujas,
que interligavam as noites; os jaguares, que evocavam visceralidade e as
pedras, que possuíam a peculiar linguagem da permanência.
As décadas (agora sei que foram "décadas") na vida selvagem deixaram marcas. Quase morri algumas vezes, o que pouco importa. O reflexo
na poça anunciou fios grisalhos. Curiosamente, essa imagem me remeteu a novas
circunvoluções.
Cortei o cabelo, arrumei roupas
velhas. Passei por algumas cidades que possuíam sua singularidade, sintaxes próprias, sotaques, mas também uma “cidadedade” quase universal. Em
um dado momento, passei pela outrora minha
cidade natal.
Estar com os familiares e amigos ainda vivos me provocou sorrisos. Já o estupor causado pelo meu
“retorno” não me afetava. Agora eu posso estar aqui como em qualquer
lugar. Todo lugar é, para mim, uma Terra de Ninguém, em outras palavras, eu me achei na
perdição. Não existe lugar “certo”, nem postura adequada. Pago meu aluguel
quase todo mês para a Terra de Ninguém. O aluguel é sempre atrasado na Terra de
Ninguém.
Nenhum comentário:
Postar um comentário