Ao meu redor, a realidade
exata me arrasta cada vez mais para baixo,
fazendo o possível para me
puxar para o fundo. Quem me despertará?
Max
Blecher
Oi,
Você está lendo um conto.
Poderia estar nas redes sociais, assistindo TV, comendo um sanduíche, sendo
diplomata em meio a guerra, mas não: você decidiu gastar alguns minutos da sua
vida lendo este conto.
Existem formas e formas de se
encarar esta leitura. Você pode achar que é um mero entretenimento. Ler e, após
algum tempo – que pode variar entre minutos ou anos – esquecer. Também é
possível tentar entender o que o autor “quis dizer por trás” da narrativa e
especular baseado em teorias interpretativas as inspirações e anseios do autor.
Porém, assim me parece, existe
uma forma de apreender o conto de um modo muito mais interessante. No exato
momento em que você lê este conto, entra em contato com as potências profundas
da Literatura. Através de narrativas acerca dos clamores dos habitantes de uma
cidade do interior, do contato de uma diarista com um extraterrestre ou um vislumbre de uma alternativa a Guerra das Malvinas; você, leitor, expande seu
campo de possíveis, vivencia realidades outras, preenche a sua vida de vetores
ficcionais que pululam na acontecência. Em suma, a Literatura enriquece o seu
outrora Mundo Literal.
Se você lê uma obra ficcional
acerca de uma cidade que ainda não conhece, ela se torna, de fato, mais íntima.
Se algum personagem lhe toca em profundos, vocês, de algum modo, se conhecem.
Se leu acerca de voos pelos ares noturnos, algo de você esteve lá também.
O Mundo Literal é uma convenção
em que os possíveis estão esgotados. Nele, a Palavra é pobre, sem grandes
forças, a não ser para nomear um objeto qualquer destacado dela. Na Literatura,
a palavra é a coisa, a palavra é eivada de cores, cheiros, sentimentos,
emoções, sentidos múltiplos. No mundo literal, a palavra é oca. Na Literatura,
a palavra e as suas mais inesperadas combinações, suas sintaxes mais estranhas,
nos remetem para outra existência. O Mundo Literal é pobre de sentido, na
Literatura, os sentidos são infinitos e imprevisíveis.
Você, leitor, emancipado pela
palavra, cultivando a Literatura na vida, expalavra, despalavra, impalavra,
repalavra ou melhor: adquire o dom de transpalavrar. Quando a literatura transpassa
pelo Mundo Literal, este ganha muitas outras nuances e leis muito mais
diversificadas. Os possíveis ganham coexistências paradoxais, você passa a
estar e não estar nos locais, sentir ódio e amor ao mesmo tempo sem que isso se
torne contradição e realizar tarefas até então improváveis e até impossíveis.
A essa altura você está
pensando que isto é loucura. Não é bem assim. A “normalidade” é um espectro de
possíveis ditado pelo Mundo Literal. Habitar apenas a perspectiva da
normalidade é tão “louco” quanto habitar apenas o mundo dos sonhos. O Mundo
Literal, a Literatura, o Sonhar coexistem na chamada Realidade. Acontece que o
Mundo Literal, nos últimos séculos, decretou que as suas leis eram as únicas e
que as leis do Sonhar e da Literatura eram subordinadas às dele.
Porém, as leis do Sonhar e da
Literatura (e também de outros mundos) foram lentamente juntando forças, até
rasgar o tecido existencial que guardava a preponderância do Mundo Literal. Não
que as leis dele estejam frágeis. Pelo contrário. Nesse ínterim, as leis do
Mundo Literal foram também se densificando. Mas agora, o campo está aberto.
Cabe a você, leitor, nesse exato momento que lê este conto, permitir que as
leis da Literatura fertilizem o mundo a sua volta, criando possíveis,
coexistindo mundos. A Literatura convida o Sonhar e vice-versa, a pluralidade
de mundos é uma possibilidade que você cria agora no seu ato mais potente de
ler. O que médicos e especialistas entristecidos pelas leis únicas do Mundo
Literal chamam de “loucura”, é na verdade, a proibição oculta das leis desses
outros mundos. A alucinação é a vinda da Literatura, do Sonhar, para coexistir
com o Mundo Literal, nada mais do que isso. Os sofrimentos que advém dessas
alucinações são causados pelas leis enrijecidas. Você pode mudar isso agora,
neste ato de ler. Não que seja fácil, mesmo em pequena escala. É menos uma brincadeira
literária no melhor estilo de Borges e Calvino, e mais uma transrealização no
estilo Philip K. Dick e Jodorowsky.
A Realidade está em profunda
transformação. Muito do que a Literatura foi produzindo ao longo dos tempos,
foi, lentamente, penetrando no Mundo Literal, que racionaliza dizendo que ela
estava intuindo as mudanças que eram naturais e inerentes ao Mundo Literal. Não
é bem assim, a Literatura foi, ao falar de foguetes, autômatos e ciborgues na
virada do século XIX para o XX, instaurando lentamente as sementes do seu mundo
no Mundo Literal. Só que as leis estão mudando. As membranas entre mundos estão
cada vez mais frágeis. Mas a resistência ainda é deveras considerável. Ainda
assim, o Mundo está mudando para Mundos.
E você?
2 comentários:
interessante a proposta...
Em grande estilo, um convite ao convite! Uma atitude experimental que flerta com a possibilidade do experimento que devém (sempre vem) de outrem.
Quem vem lá? Alguém que gostaria de ter sido convidado, apenas. Esta tal porta estreita que (a)guarda um fora...
"Que porta!?"
"Não sei!" "Há de haver! Não me convidariam por nada...
Me pareces reticente em devir...
dev(o?)...dev(venham até mim!)
...Fico pensando...
Parado ante a janela, flerto com quem passa...
Fito o meu pensamento no reflexo do vidro...
Vejo por que paro.
digo: ""devo ir?""
penso... "que venham e nos vamos!"
penso ante a janela...
penso...
O devir está, não o do transpalavrar onde todo mundo procura, mas o do literal. Não, o problema é a procura por ele, devir não se procura.
Postar um comentário