Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

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15.11.13

A Fraude Nossa de Cada Dia



- E aí, você vem?
- Pô, ainda tô respondendo uns...
- Imagino! O seu editorial foi foda!
- É cumpadi, dessa vez prenderam mesmo aqueles filhos da puta...
- Mas vem depois, né?
- Sei não... tô baixando um filminho...
- Porra, mas tu é hipócrita pra caralho heim?!
- Quê isso, rapá?
- Ué, tu escreve um editorial fo-da, criticando aqueles bandidos que azucrinavam tudo e finalmente foram em cana e vem você aê, cometendo crimes?
- Porra, quer comparar o que eles fizeram com...
- E daí? E daí? É tudo crime, cara! Eheheheh, tu é foda mermão... 'té mais, aparece aê se puder. Valeu.

Coço a minha barba. Vou pro chuveiro. Ponho água quente, mesmo sendo imprópria pra atual temperatura ambiente, nutrindo a esperança que o calor na pele não me faça pensar. Deito de toalha no sofá. Em minha cabeça ecoa a conversa no telefone. Não me resta mais nada. Estou condenado a me martirizar pela fraude nossa de cada dia.

Olho pra foto da minha filha, ali com uns três anos. Cultivei mesmo um mundo melhor pra ela, ou apenas fiquei posando de bom moço nas coisas que escrevo? E todas aquelas desculpas que inventei pra não ir ao balé dela? E todos aqueles momentos em que ela chegou, na terrível apreensão da realidade pelos ingênuos e me perguntou se eu estava triste e eu disse “nããão filhinha, papai só tá pensativo, tá?”. O olhar que vinha depois era de uma tênue condescendência, em que eu sempre me espantava em perceber. Mas minha própria filha aprendeu desde cedo a sorrir amarelo em fotos. Quando o seu brado de autenticidade resistia, a mãe, com a minha total permissão, dava uma tremenda cotovelada até que a menina, muito a contragosto, sorria, participando então do grande circo das convenções, a acachapante implantação do nosso ideal de infância nas crianças. A ubíqua fraude da “alegria” instantânea.

Lembro da mãe. A menina puxou os olhos dela, fazer o quê? Quantas vezes eu disse “amor” pra ela sem a palavra fazer nenhum sentido pra mim, quantas vezes a iludi com a preparação de viagem pro exterior que nunca fizemos? E ela, ganhando os tubos no banco e rindo ao chegar em casa dizendo que conseguiu fechar algumas aplicações, enganando um correntista mais uma vez com promessas de ganhos estratosféricos. Gasta a porra do dinheiro dos outros com roupa e fica com pena dos pedintes no sinal. Rárá. O pior é clamar pelo seu “amor de mãe” e exigir pensão, sendo que a menina é criada pela babá, por que a mãe sai do trabalho pra academia, da academia pro sambinha. Toda vez que ela dizia “vou pro sambinhaaaa” eu ouvia “tô doentinhaaaa; quero sopinhaaaa”. O louvor ao samba que tomou grande parte dos meus conterrâneos nada mais é que o mergulho na escravidão da fraude. Muitos dos sambas ecoam a dor de escravos, entoando uma cantiga triste se fingindo de alegre, única forma de suportar a dor da pobreza. Os amantes instantâneos do samba, que nunca foram em um samba de raiz na periferia e que na década passada gostavam de sertanejo e na retrasada de pop rock, assumem que nada podem fazer diante da dor de suas fraudes. Mas o pior mesmo é o amigo “artista” dela. O cara não tem talento nenhum, mas seu próximo "projeto" é sempre aquele que vai “arrasar”. Todos os amigos dizem que o trabalho “é lindo, mas incompreendido”, mas pensam “é uma merda, mas como todos dizem que é bom, vou fingir que entendi”. A fraude do “artista” sem talento em não se assumir como medíocre é diretamente proporcional a de seus amigos que o louvam como exercício mútuo do engano.

E penso, claro, na Livinha. Na minha fraude diária em permitir que o cotidiano se fingisse de destino e nos separasse. Na minha “coragem” em supor a inexistência dela em meu ar, nas minhas punhetas, em prol do que eu tinha, de fato, “escolhido”. E a própria fraude de Livinha, defendendo os animais, toda e qualquer minoria da moda e contra os agrotóxicos. Tudo pra mascarar um grande desejo de ser incontestável, de estar inegavelmente do lado certo, de ser um exemplo pra toda porra da sociedade. Estamos todos do lado errado. Do lado da farsa. Eu, com meus artigos defendendo as causas dela, pra conquistá-la e pra pegar bem pra mim. É só tomar duas doses de uísque que começo a falar que somos todos assassinos, que matamos bactérias e vermes todos os dias dentro da gente e que o pé de alface deve urrar de dor ao ser retirado da terra. Apenas os biólogos ainda não detectaram isso, mas a dor - pensava eu, ébrio - é óbvia. Ah, Livinha... vegetariana, budista e como todos nós, uma fraude. Suas meditações diárias não serviram pra evitar toda aquela depressão. Depressão, claro, porque ela era o centro do mundo e, quando isso falhava, quando a dura realidade se mostrava, ela caía. “É falta de carne”, eu pensava. Mas não. Toda pessoa excessivamente espiritualizada é, no fundo, depressiva. A fraude espiritual: não amo a Totalidade porque a sinto, mas porque preciso desesperadamente que ela exista. E quando desconfio que não... fudeu!

O que me leva ao meu amigo de infância “de esquerda”. Defende aos berros a “igualdade”. Aí, quando vai dar nota aos seus alunos, irradia a mais plena meritocracia, xingando os que não estudam e clamando os mais abastados em conhecimento. Fica dando aulas clandestinas pra juntar mais dinheiro. E pior, troca o preço dos vinhos no mercado pra levar o mais caro com o valor do mais barato. E com o maior orgulho, dizendo que é “golpe do precariado”. Adora as vantagens que o partido arruma pra ele. A fome de igualdade, nesses momentos, cessa. Aí, defende os índios, as cotas e passa pra trás o colega que ia ganhar a bolsa de pesquisa, fazendo fofocas contra ele. É tão fácil defender os distantes... Mas o pior mesmo é a crítica dele aos humoristas "politicamente incorretos". A denúncia da suposta "tirania" dos humoristas contra as minorias apenas revela a verdadeira tirania contra as piadas com minorias. As minorias muitas vezes sabem rir de si próprias, diferente de seus supostos defensores, que querem moralizar até a liberdade do riso.

E fico olhando as minhas tias, vendo suas novelas. O que se passa com esse povo que apreende as normas de conduta afetiva heterossexuais escritas por homossexuais? Qual o preço que a nação paga por cultivar um imaginário sexual invertido? Sim, visto que quase todas as narrativas que eles apreendem são (des)interpretadas por "atores" que casam e tem filhos porque o agente manda, por que a assessoria de imprensa assim determinou, afinal, ídolo gay dá pouco ibope. Deve ser por isso que o filho da diarista usa aquelas camisas babylook com estampas purpurinadas, óculos degradê e fala forçosamente anasalada. Faz-se afeminado por saudade do pai ausente, creio eu. A sexualidade como protesto: o prazer em negar a vida em que ele fantasia que o pai gostaria que ele levasse. O que cada uma faz da sua genitália, é  problema de cada um, mas, por favor, faça com tesão de verdade!

E eu, claro, deitado aqui, no sofá. Como se essas minhas reflexões fossem me perdoar das minhas fraudes. Nesse exato momento, a minha faceta mais fraudulenta apreende o que acabei de refletir e clama: “ah, que bobagem... as coisas são assim mesmo... escreve seu artiguinho elegendo e descendo a lenha no bode expiatório da vez e assiste seu filminho downlodado. O pior que pode acontecer é a legenda tá uma merda”.






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