“O comportamento da possessão tem um eixo sequencial
– uma espécie de sintaxe – ao longo do qual se combinam, como estágios, o
aparecimento inicial do espírito, as negociações complexas estabelecidas com
ele e as festividades públicas nas quais ele anuncia sua identidade.”
Stuart
Clark
“A vida é muito discordada. Tem partes. Tem
artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras todas do Cão, e as vertentes do
viver.”
Guimarães Rosa
Que
mundo é esse, afinal, que o despertar me convoca? Parei
de ler jornais, me aposentei antecipadamente. As narrativas elencadas pra nos
avisarem da pertinência dos valores não me convenciam mais, afinal. Mas minha
vidinha simples é complexa pra caralho.
A
alegria de Severino: meu porteiro me sorri largamente, isso me
alivia, mas me deixa desconfiado de nós dois. O seu sorriso, aparentemente
sincero, é uma frivolidade daqueles para quem o bife, a esposa e a criança
fornecem a Base do Mundo. E eu? Fico aliviado por ser vizinho àquela
constância?
Ali
na praia, um grupo de pessoas, uns hippies reciclados, festeja a
proximidade do fim do mundo. É impressionante os exercícios que alguns fazem
para pertencer, nem que este pertencimento tenha como fetiche o seu fim. A expectativa
da nova era, tanto aqui ou, no caso deles, em outro plano, me soa muito velha.
O desejo do novo é a velhice da expectativa humana. Agora, emergir um novo, de
fato, é outra coisa. A preguiça existencial da humanidade faz com que ela adie
sempre a gravidez da alteridade, recurso privilegiado de alguns malditos, que
não sucumbem ao medo de morrer no parto. Mas eis que uns fetos órfãos muitas vezes
sobrevivem, trazendo pros olhares atentos um respirar atônito que sustenta o
passo adiante. Assim, eu, diante dos hippies reciclados e seus sorrisos
mórbidos, opto pelo mar.
Almoçando
com o amigo. Reclama que seu paciente não pode, não deveria,
beber ao pilotar um avião com tantos passageiros. Pergunto se ele já o atendeu
cheirado. Se ofende, olha pro lado pedindo clemência pra o que quer que fosse e
diz que sim, mas era só um pouquinho, só pra ficar ligado, pra prestar mais atenção
aos pacientes, que o pó o ajudava a lembrar dos nomes da medicação etc etc etc.
Eu digo que se o paciente dele pilota um avião bêbado e seu terapeuta o atende
cheirado, eles estão equivalentes. Digo isso com um sorriso contido, perversão
leve que finjo julgar necessária. O velho Sigmund, que nunca gostou de
estardalhaço, proibiu qualquer criancice fora de hora. Eheh: alguém precisa lembrar
que as criancices assim são por serem justamente fora de hora... Meu amigo,
eivado de um ódio já adormecido pelos trâmites da civilização, me condena: “careta”!
Olho para mim, não que eu seja careta, respondo, apenas negocio com vagar com
meus demônios... Acusado agora de medieval, enuncio que os meus demônios
poderiam ser mais antigos ou mais contemporâneos. Observo o meu amigo, tentando
fazer com que meu dissecamento seja sutil aos seus olhos. Sua investigação da alma
humana fracassou, o deixou por demais cético. Hoje ele é o traficante legalizado,
que se sustenta financeira e existencialmente ao trocar dores e angústias por
substâncias químicas. Passa-se nas farmácias como se ia à igreja, mas agora se
comunga comprimidos. Se a depressão é a nova histeria, criar sentido pra vida é
uma tarefa quixotesca. Antes que confunda o meu amigo com Sancho Pança, me
despeço de sua autoridade sináptica; não antes de sua ex-mulher lhe telefonar
sôfrega, bradando que o menino repetira de ano.
E
ela com sua loucura de hora marcada. Ligou, marcou no bar da
esquina, como de costume. Ficou reclamando do chopp morno, do aluguel, do
calor, que queria viajar, que seu cigarro estava acabando, que a mãe não falava
com ela e por aí vai. Eu olhava hipnotizado pelos movimentos das suas mãos, pequenas,
macias, desnorteadas e coreografadas ao mesmo tempo. Lembro que quando a
conheci, estava passando pelo pub e a melodia do rock inglês me fez entrar,
aquele paradoxo em que os hinos das desesperanças nos transbordam de esperança.
Extasiei com o estupor em que ela cantava os versos e dançava fazendo o mundo
se adequar à dança. Aproximei, cantando também, conversando através de slogans
que o som e movimento na pista permitiam. Depois da minha segunda investida,
ela quase acariciou o meu rosto e me disse com um ar titubeante e profético que
nós nunca poderíamos ficar juntos, ela dizendo que vende o corpo. Não sei por
onde meu preconceito andou naquela noite, mas eu disse que tudo bem, porque eu
vendo amor. “Que horror!”, ela, em seu próprio moralismo, manifestou espontaneamente.
Depois disso, trocamos telefones e nos encontramos de vez quando, quase sempre
quando ela quer. Disse que era brincadeira, que não era “profissional”, que era
enfermeira, eu respondi que tudo bem, que isso é um fetiche comum. Fizemos um
pacto inaudito em que fingiríamos uma crença mútua. Fomos, claro, pro meu
apartamento, final óbvio dos nossos encontros no bar da esquina. Nunca lembro
bem do nosso sexo, é quase fantasmagórico. Essa noite, talvez porque eu tenha
sido um pouco mais cuidadoso na escuta, estávamos mais próximos, pois nunca seu
olhar foi tão explícito como nessa noite. As vias de acesso do mais íntimo
estavam abertas, com as placas de “cuidado” ainda expostas. Acordei, o cheiro
de perfume com suor no outro travesseiro era a evidência que algo mais do que
fantasmagórico tinha ocorrido ali.
De
galho em galho, ainda conjurando possíveis improváveis. Meus
vizinhos escutam aquela música, cujo autor não se decidia entre orgulho e desespero
em relação a sua favela. Minha atitude revolucionária foi aumentar o volume do
filme, que denuncia as redenções que eu não tive: filme ruim me convida a ser protagonista da minha vida, filme bom problematiza o esquecimento diário da minha ubiquidade cósmica. O cinema é o encapsulamento
do sagrado, comido com pipoca sabor isopor. Acreditando ser o cinéfilo um onanista
sacrofóbico, desligo o aparelho antes do segundo crédito final. Sento no canto
da sala, agora trevas. Olha da janela, o horizonte não inspira. Suscito um
cosmos em mim, pequena guerra de intuições. Alguns impulsos vasculham lacunas
de ser; menos sensação de dever cumprido do que um sentido qualquer pra fora,
descambando de mim.
Um comentário:
A cada conto, um ponto.. . Adoro seus textos Nelson.
Nada previsíveis, 'as vezes agressivos e bastante realistas tal qual a pipoca isopor. É seu estilo..
Introdução com Guimarães Rosa salva a lavoura(dos leitores), quanta doçura e sensibilidade este homem tinha!!!
Lembrei de " Crônicas de um amor louco", filme. Vc viu? se nao, recomendo muitíssimo!(sim, eu sempre me lembro de alguma coisa)
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