"O cartaz 'Cuidado com o cão' vai ficar dependurado permanentemente na minha porta.
Mas vou tentar ser um animal correto e,
se você jogar um osso com bastante carne, posso até lamber a sua mão."
F. S. Fitzgerald
Mas vou tentar ser um animal correto e,
se você jogar um osso com bastante carne, posso até lamber a sua mão."
F. S. Fitzgerald
Isso não é um desabafo, não sou
desse tipinho. O que eu digo aqui é apenas uma constatação. Lembre-se que eu
não pedi pra você ler.
Ser maldito seria muito fácil.
Teria alguém pra dizer na minha cara que eu não presto, não sou confiável, que
eu, de alguma forma mais relevante, não valho a pena. Não é bem isso o que
acontece. Minha passagem pelo mundo até afeta as pessoas, mas elas se aproximam
em determinados momentos, em crises. A normalidade e o instituído tendem a me
ignorar, a criar uma teia de acontecimentos em que eu estou necessariamente
fora, pois não consigo pertencer a isso. O instituído e eu nos expulsamos por
definição, eu fracasso ao lidar com o instituído, por outro lado, o instituído imprime
regras em que se sabe que eu não seguirei e, portanto, não pertencerei. Muito me
assombra como as pessoas conseguem habitar as convenções e esperar felicidades
em suas vidas. Os momentos de alegria envolvem certa novidade corpórea que a
convenção nunca vai poder oferecer, a não ser o sorriso amarelado nas redes
sociais. Por isso, minhas alegrias, quanto mais intensas elas são, mais por
anônimas elas passam. O prazer de viver se dá fora das convenções, estas apenas
imprimem um sorriso cansado para se dormir tranquilo, a calmaria palerma do
débito automático. Então, por mais que eu berre essas coisas, vou ficar
invisível, não através de proibição, mas por ser incompatível com a “sensibilidade”
da continuidade militaresca das convenções.
Também seria muito fácil
enlouquecer, ao contrário do que normalmente
se diz. Para enlouquecer é preciso uma simples, mas poderosa decisão: “não vou
fazer nada do que eles querem e se
eles me obrigarem, eu quebro a casa ou densifico meu pensamento a ponto de 'ouvir vozes' em minha cabeça. Se eles
me doparem, ou darem choque etc, tanto melhor, terei mais motivos e,
principalmente, desculpas pra não fazer o que eles querem”. A indústria perversa
dos familiares culpados vai dar dinheiro para os farmacêuticos espertos e “psis”
de toda a espécie, para apenas fazer a manutenção dessa escolha original do “louco”.
Tadinho, né? A minha escolha é outra, muito mais interessante e difícil, penso
eu: vou ser o que eu sou a cada momento, mesmo que isso me leve a deixar de ser
(e tomara que assim seja!) o que eu era. Não, isso não tem nada a ver com a
loucura. Isso é apenas como as coisas de fato funcionam quando não estão sob o
jugo das convenções. Sempre vai haver a desculpa da “sociedade civil”, esse
tipo de besteira. A sociedade deveria aprender a se auto organizar. Por favor,
não diga que isso é impossível, pois as formigas, abelhas, pássaros, juntos com o próprio
planeta, já possuem esse PhD há milhões de anos, nós é que nos desligamos deles “precisando” das leis. O animal em mim é muito mais inteligente que a
mecanicidade alheia em permitir que a jornada da vida seja guiada por semáforos
quaisquer.
Claro que sempre há a amizade e
o amor. A amizade pode ser destruída pela quase insuportabilidade dos afetos
que passam por ela. O amigo não é só aquele que acolhe seus segredos e
diversões, mas aquele cujo afeto se perpetua nas suas singularidades mais
estranhas, ainda que tenha que (de preferências, mas existem tolerâncias)
abrigar esses afetos em uma espécie de ética da amizade: nada a ver com
convenções e sim com o artesanato de relações construtivas ao longo do tempo.
Óbvio também que o amor passa muito por essas características, mas o amor
romântico tem o plus demoníaco (“para
além do bem e do mal”, como diria Fred, O Bigodudo) com o prazer sexual. Todo o
problema do amor & sexo deriva das condições de prazer serem, muitas vezes,
excludentes: ela goza com a minha busca constante por ela, eu gozo com o
cultivo de nosso pertencimento mútuo. Esse tipo de incompatibilidade é às vezes
tolo, pois seria possível uma complementaridade entre tais prazeres (com todo o
risco de se tornar uma complementaridade opaca...), mas a construção de uma
inteligência coletiva do casal - em que não haveria mais "condições" de prazer - é um processo que tende a sofrer boicotes das
convenções mais próximas e sacanas: família, prosperidade, segurança...
Fico pensando, sim, nas
crianças. Como um casal neurótico pode criar uma criatura plena? A resposta é
óbvia: não pode. Temos muita vergonha de aprender com os índios: os filhos são,
de fato, filhos da tribo e eles escolhem seus pais. Paternidade biológica é
tolice, chauvinismo genético. Mas é aí que tudo começa: é negado às crianças a
escolha de pertencer. Não digo que seja fácil. As facilidades geralmente nos são
negadas quando saímos da convenção, mas apenas pra criar uma inteligência
cósmica. Se eu tivesse que cuidar o tempo todo de uma criança, jamais poderia
ter disposição de aprender com elas, de rir, não de suas gracinhas (essa mania
infantil de imprimir infantilidade na criança), mas de seu olhar único, sem vícios
de signos e semântica, para o cosmos. Jamais poderia brincar, não
infantilmente, mas com a minha criança interior e a sua correspondente
exterior.
Assim, eu sigo, quase
invisível, quase anônimo. Se você topar comigo um dia desses e me perguntar “e
aí, tudo bem?” e eu estiver minimamente provocativo, vou te responder que “tudo
bem é uma utopia” ou algo assim. Você pode se ofender, eu vou apenas rir, sim, da sua cara
mesmo. Ou a gente pode caminhar junto por alguns metros e respirar uníssono a mais esplêndida acontecência.
4 comentários:
Nossa! texto lido em um fôlego só. Do tipo que faz pensar, faz rir, faz gostar de ser e de estar.
Grifo para a frase: "A amizade pode ser destruída pela quase insuportabilidade dos afetos que passam por ela."
Nenhuma palavra desperdiçada!
Clap! Clap! Clap!
Beijo Nelson
Muito obrigado, Juli! A vantagem do conto curto é que vamos diretíssimo ao assunto...
Priemiro encontro com texto do druam, mas... eu o conheço de tempos imemoriais?... estranhamente familiar esse mundo que aparece quando escorro e fujo pelas frestas das "cenas oficiais"... Keep walking, Druam...
Caminhemos, pois: a walk on the wild side...
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