São
turvas as minhas memórias mais remotas. Sei que sempre sonhei com Harriet. Na
infância, em função de meus relatos acerca de “minha amiguinha”, meus pais a interpretaram
como amiga imaginária e tentaram fingir que não se preocupavam. Entendendo a
preocupação deles, um pouco mais tarde, lá pelos 6 ou 7 anos, parei de falar de
Harriet. Sequer comentei com minha irmã, que nasceu depois desse meu silêncio.
Mas Susan sabia, de certo modo, da existência da minha companheira onírica, pois
ouvia balbucios meus chamando “uma tal de Harriet” durante o sono.
Brincávamos
no firmamento, na Lua, em Saturno e dentro do vento. Harriet era linda e
alegre, meus momentos com ela eram de extrema felicidade.
Quando
chegou a adolescência, começaram as cobranças por uma namorada. Sem mentir, eu
dizia que já tinha, mas nunca, evidentemente, poderia apresentá-la. Meus
colegas na escola debochavam de mim, e minha família, mais uma vez, ficava preocupada.
Por isso, me permiti sair algumas vezes com Giselda, uma moçoila bonita que
sempre foi deveras simpática comigo. Até gostava dela, porque era um tanto
cordata e conversava comigo sobre diversos assuntos.
Meus
sonhos com Harriet se tornaram obscuros, com ela invariavelmente reclamando ou
desvanecendo em fumaça negra, às vezes em fogo. Com enormes olheiras, Giselda
reclamou que pesadelos terríveis “com uma garota muito má que sempre a
ameaçava” mal a permitiam voltar a dormir, e compreendi que era o momento de
terminar o breve namorico. Disse a verdade a ela, que
tinha outra pessoa etc. Giselda, claro, chorou muito, ficou enraivecida, mas
acabou entendendo. Soube que ela morreu em um desastre aéreo, mais isso foi
muitos anos depois.
Meu
relacionamento com Giselda, mesmo depois de terminado, acalmou um pouco os
temores da minha família e as traquinagens de meus colegas. Harriet foi
reaparecendo lentamente em meus sonhos da forma tenra que a caracterizava e que
eu sempre amara.
Passaram-se
os anos, eu, redator de jornal, feliz com a solidão diurna e o matrimônio
onírico, comecei a ter também problemas no trabalho. Meu chefe, um tanto
conservador, disse que daria a promoção a um indivíduo casado, que preferiria
passar o cargo de editor para mim, mas que, infelizmente, seria dado ao Sloan.
Fiquei um tanto magoado, pensava em fazer várias melhorias em minha casa. Minha
mãe, sabendo do ocorrido, também se prontificou a me instigar, “mais que tanto
eu queria um netinho...”. Nessa época, estranhamente ou não, estava sonhando um
pouco menos com Harriet. Toda essa situação me fez, depois de anos evitando, ir
a uma psicóloga.
A dra.
Mildred era perspicaz, com um olhar bondoso e atento. Insistia, a princípio,
que Harriet era meu lado feminino, meu ideal de mulher, aquelas coisas típicas
do divã. Eu apenas olhava para o lado e voltava a falar da minha vida, do meu
trabalho e, inevitavelmente, dos meus sonhos. Esses, sem Harriet, também eram
comentados. Às vezes faziam mais sentido. Depois de um tempo, a dra. Mildred se
interessava apenas pelos meus sonhos com Harriet. Pelas nossas viagens a outros
planos de existência, as conversas com espíritos e extraterrestes, com
incorporais, deuses e lendas. Pelo nosso sexo corpóreo, telepático, energético
etc. Pelos nossos filhos, Stuart, Anne e Kroycner. Esse último não chegou a ter
gravidez, que, aliás, a da Anne durou 9 meses, semelhante à realidade desperta,
mas a de Stuart cerca de 3 anos, e o parto me fez ter vários pesadelos, envolvendo
muita dor. Kroycner sequer tinha aparência humana. Não sabemos identificar qual
é sua pertinência, sabemos apenas que o amamos muito, a despeito das tantas
estranhezas que nos obrigava a lidar em nosso dia a dia – ou seria melhor dizer
sonho a sonho?
Enfim, dra.
Mildred me disse:
- Sua
relação com Harriet, o amor de vocês... é a coisa mais linda do mundo. Não
posso fazer mais nada por você, a não ser ficar escutando seus sonhos
maravilhosos. Se você quiser, vá a um psiquiatra.
Eu me despedi
da doutora, que tinha lágrimas nos olhos.
Os
primeiros cabelos brancos me despontaram na fronte. Meu pai falecera e minha
mãe estava doente. Susan, que se tornou lésbica, foi a minha casa com a
companheira, Tera:
- Cara,
vê se arruma alguém aê. Nossa família vai acabar, pô!
Não
costumo dar muita atenção para as opiniões das pessoas, nem de Susan, mas
ocorreu que, logo depois, fui demitido. Corria à boca pequena que o motivo era
minha loucura. Percebi, tardiamente, que tinha o hábito de conversar com
Harriet mesmo sem a presença dela, desperto. Acostumei-me tanto a sua presença
que era como se sempre estivesse ali. Fui então ao psiquiatra.
O dr.
Malbus foi muito cordial e rápido. Disse que meu caso não era tão grave, que já
viu piores,
e que me prescreveria uma medicação "muito leve". A verdade é que não
era tão leve assim. Eu me sentia pesado, sonolento. Os sonhos com Harriet foram
diminuindo; ela aparecia se despedindo, triste. Minha vida ficou insípida, mas
consegui voltar a trabalhar em outro jornal. Uma tarde dessas, fazendo feira,
ajudaram-me a escolher algumas verduras que não conhecia para fazer uma receita
para a minha mãe, cada vez mais enferma. Quem me ajudou foi uma mulher muito serena,
Joan, que me acompanhou até em casa. Convidei-a para um café, depois um almoço
e, em seguida, um jantar, e foi quando começamos a namorar. Depois de alguns
meses, nós nos casamos. Minha vida estava, teoricamente, completa.
Joan era
uma mulher séria, uma botânica compenetrada, envolvida com causas ecológicas.
Nasceram, com um intervalo de um ano e meio, nossos dois filhos, William e
Leah.
William
sempre foi muito ativo, e Leah, terna. Pena que minha mãe nunca a conhecera.
Quando meus filhos estavam com seus 6, 7 anos, minha vida se tornou um tédio.
Joan engordou e ficou um pouco bruta, apenas um pouco. Eu estava infeliz no
trabalho e os remédios me adoeciam os rins, sobretudo.
Combinei
com o dr. Malbus que tiraria os remédios devagar. Aos poucos, fui voltando a
sonhar com Harriet. Ela não envelhecera, parecia um tanto apática no início,
não me deixava ver nossos filhos. Lentamente, foi se tornando mais próxima. Revi
meus filhos, eles sim, cresceram; apenas Kroycner se tornara outra entidade,
agora mais etérea. Harriet pedia para que eu me separasse; eu falava que ficava
preocupado com meus outros filhos etc.
Com o
passar do tempo, Harriet e eu nos reaproximamos totalmente. Joan ficava um
tanto incomodada com minhas ereções e ejaculações noturnas, sem mencionar os
meus murmúrios. Eu, extremamente envergonhado, dizia que era “apenas um sonho”.
Joan
estava ficando muito severa e amargurada. Eu, sem muitas opções, pedi o
divórcio. Ela não discordou nem concordou.
Um dia,
abracei as crianças, choramos juntos e fui embora. Aposentei-me e montei um
jornal alternativo. Leah sempre me visitava, trazendo grande alegria; já com
William, tinha que marcar, e muitas vezes, no encontro, me sentia enfadonho
para ele. Em certas ocasiões, Leah chegou a relatar sonhos estranhos com uma
entidade chamada “Kraycek”, ou algo assim. Comecei a ver vultos de Harriet pela
casa, o que diminuiu muito minha solidão na vigília. Os vultos se tornaram cada
vez mais nítidos, até que tive o AVC.
Fui
levado ao hospital pelos meus filhos, fiquei com a metade direita do meu corpo
um tanto paralisada. Depois de muita fisioterapia, conseguia andar de muletas.
Mas agora via Harriet o tempo todo, algumas vezes via Stuart também.
A velhice
foi se instalando, tênue e sorrateira. Harriet estava comigo no café da manhã,
no breve passeio na calçada e até me acompanhava nas leituras. As enfermeiras
comentavam entre elas que eu delirava, que conversava sozinho. Eu apenas ria
internamente.
Em meu
último sonho, Harriet disse sorrindo que me aguardava em breve. Acordei,
comprei meu caixão e avisei (com certa dificuldade, pois as pessoas despertas
não me entendiam direito depois do AVC) à enfermeira, que me cravou um olhar
acusatório. Deitei confortavelmente em minha cama, vestindo o terno preferido
de Harriet, e lentamente comecei a tremer. Minha visão foi ficando cada vez
mais turva e uma vertigem suave, mas crescente, perpassava todo meu corpo.
A enfermeira chegou, tomou meu pulso e ligou para a ambulância. Eu via breve e
obscuramente meu quarto e, quase simultaneamente, via Harriet, Stuart, Anne e
(provavelmente) Kroycner de braços abertos me chamando. O torpor tomava mais e
mais conta do meu corpo, quase não consegui balbuciar:
-
Harriet!!!
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