Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

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10.3.10

Intermezzo

Transtorno. Não sei o que as atemporalidades influem, perco a dimensão das ressonâncias. O que isto tem a ver com Job ou comigo?

Ela chega em casa. Feliz? Não sabe. Sua rotina lhe lembra de verificar o filho.

Puky sabe que ela vai reclamar. Mas, não tem jeito. O clamor em seu corpo, em sua vida, tudo o remetia pra esse ato. Sente-se bem, como nunca. Sente-se sendo o que é, por mais que o que ele seja não se defina. Pouco importa. Ele é.

-Pu... Puky?... Que merda é essa?

Puky estava orgulhoso do chifre, ao centro da testa. Tinha uma textura de pedra, mas ao mesmo tempo era leve o suficiente para quase não sentí-lo. Era cinzento-claro, ele adorava:

- Eu sou assim agora, mãe.

-Coméquisso aconteceu peloamordedeussssss!!!???

-Eu fiz, mãe, e pronto.

Puky estava muito certo de sua postura. Seguro.

-Vou te levar pro médico pra desfazer esta merda AGORA!!! Você tem só 13 anos, meu deus, TREZE ANOS!!!

-Mãe, eu não vou a lugar nenhum. Pronto, acabou.

Ela olhou atônita, via imagens da gravidez, do carinho com que o amamentava. O chifre era a calcificação de todos os possíveis erros maternais que porventura ela tivera, mesmo sem saber ao certo quais eles eram. Sem dizer mais, se retirou pro quarto. Deitou na cama, de tamanco, uma tristeza veio, sem licença. Pensou que o pai fazia falta (não pra ela!). Foi pra cozinha, pensou em tomar um bourbon, mas fez apenas chá. Bebendo, foi ao computador e procurou por "implantes". Nada parecido. Ela não sabia o que o filho havia realmente realizado. Adormeceu de cansaço.

Puky sabe que a mãe vai pesquisar, não se preocupa. O grupo de operação genética clandestina nunca foi pego. A sua operação foi a mais audaciosa. Eles a tinham feito em um treiler próximo à lanchonete. Com o dinheiro do pai e da avó de aniversário, mais as economias de alguns meses, tudo foi possível. Enviou o sangue e o pedido, em 2 dias recebeu o e-mail com os dados: onde, quando e quanto. Perfeito. Mesmo se Puky contasse tudo - e não o faria - não os pegariam.

O chifre faz Puky muito popular na escola, principalmente entre os menos populares. A diretoria ameaça uma expulsão, mas o garoto não é mau aluno, além disso, ele possuía vitórias nos concursos de poesia contra vários outros colégios. E ainda: seu chifre gerou uma onda de alteração genética clandestina: asas, manchas de onça, antenas, pelos coloridos, olhos de gato. Não dava pra expulsar um quarto do colégio. Existiam boatos de pessoas com 2 cabeças e 3 braços, mas, por via das dúvidas, eram boatos. Puky, precursor e porta-voz, se tornou líder. E nada da operação clandestina. Uma vez, a polícia chegou muito perto. E só. A legalização era discutida, Puky, quando mais adulto, escreveu a lei junto a colaboradores advogados e fez a promoção dela com políticos. Já existiam homens-peixe, (que podiam viver também fora d'água), vampiros que não sugavam sangue - ou eles não declaravam claramente que o faziam - mulheres que subiam - literalmente - pelas paredes e até carnes e fluxos sanguíneos mais duros, quase como ferro. A humanidade se tornava formada por várias criaturas, mas ou menos dentro (ou fora) da lei. A segunda geração, filhos de uma pessoa ou um de um casal que havia feito uma ou mais alterações genéticas, geralmente adiquiriam alterações espontâneas. Claro que algumas nasceram mortas, ou muito doentes. Puky berrava aos alto-falantes: "pessoas nascem doentes ou mortas de qualquer jeito. Agora nascem doentes ou mortas do nosso jeito!"

Puky chegou a possuir, além do chifre, aguns fincos de pedra nos braços e nas pernas. Os do braços foram diminuídos e os da perna, retirados. Foi desenvolvido um laboratório caseiro em que qualquer pessoa, sem conhecimento genético, poderia fazer suas próprias alterações. Certa vez, uma lei foi promulgada, e todos teriam que se tornar "normais" de novo. Quando quase uma guerra civil se tornava eminente, a lei foi revogada. Mérito, entre outros, mas principalmente, de Puky.

A tecnologia evoluía. Uma pessoa se tornou pedra e obrigou a família o manter pra sempre naquela estado. Uma neta, 50 anos depois, resolveu descumprir a promessa. Levou um tremendo esporro do avô. Mas, a pedido de acessores de Puky, ele deixou o "Depoimento de uma Pedra":

- Sem tempo, sem sentimentos. Puro ser. Nenhuma complicação, nenhuma conta a pagar, nenhuma doença. Nenhum envelhecimento, nem desilusão. Simplesmente acontece: o mais puro acontecer.

Começaram a aparecer pessoas-água, pessoas-luz. Algumas pessoas-eletricidade assassinaram pessoas "comuns". Com muito custo, foram retornadas ao seu formato humanóide e presas. Mais polêmicas. Puky se elevou mais uma vez e disse que todos os criminosos, alterados ou não, devem ser punidos. E que todo o seu know-how estaria a disposição para prendê-los, caso necessário. Os tumultos acalmaram-se quase totalmente.

Uma das alterações mais difíceis de aceitar eram as alterações selvagens. Algumas pessoas queriam ser várias coisas no mesmo dia, ou até na mesma hora. Alterações aleatórias eram proibidas, envolviam muito risco de convivência e preparação. Alguns faziam alterações genéticas aleatórias clandestinas, mas era algo raro. Rumores diziam que sempre se perpetuou essa prática, porém, nunca se disseminou. Houveram relatos de uma mulher que, de repente, se tornou campo magnético e atraiu fortemente dois homens-aço, um morreu, outro ficou com sequelas.

Existia uma grande espectativa para as pessoas se tornarem estrelas. Puky foi pessoalmente acalmar um bilionário que queria ser um novo sol. Foi com um astrônomo, explicar o problemática que acarretaria no sistema solar. Muito difícil convencer o bilionário. Ao fim, ele se contentou a se tornar uma ilha, em sua praia particular. Foi proibida - por ele - de se tornar um ponto turístico.

Puky estava cansado, depois de anos. Lutou muito, dedicou sua vida à causa da alteração genética. Muitas vezes chegou próximo de perder as esperanças, mas agora, tudo parecia estar controlável, apesar de nunca ter estado estável. Mas, diante de tudo que ocorreu, assim estava aceitável. Hoje, pessoas com nenhuma alteração genética sequer, eram minorias. Minorias que ele sempre defendeu sua legitimação. Sua autenticidade.

Então, Puky se dedicou a um último projeto. Secreto. Finalmente, estava pronto: Puky se tornaria pensamento. Não avisou ninguém antes, mas programou dispositivos para, assim que se tornasse pensamento, todos os seus próximos seriam avisados. Ele ligou o dispositivo e...

Não faz mais sentido chamá-lo de Puky. Creio que foi assim como entramos em contato com a sua acontecência. Estava perdendo seu ego, mas no princípio, sentiu muita ternura e pena de sua mãe, deitada de tamancos na cama, questionando-se se havia cometido algum erro grave na criação do filho. Sua mãe nunca se alterou geneticamente, por mais que certos problemas de saúde tornassem tal conversão recomendável. Mas não. O outrora Puky queria muito abraçá-la, mas entendeu que sua mãe, de alguma forma, entendera que a jornada do filho foi frutífera, apesar dela ter sonhado com um outro caminho. Esse pensamento jorrou pelo cosmos, povoando-o de ternura.

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