(para ver imagem ressoante com este conto, vá rumo a Cla Leal)
Ambos se entreolham. O bourbon e o tabaco cultivam várias vertigens que espalham-se pelo corpo. Todos os dados cósmicos estão lançados. Ela, em seu majestoso vestido azul, com os cabelos negros de noite tempestuosa se lançando corajosamente sobre os ombros. Ele, em trajes soturnos, como um anteparo das vísceras, que guardam algo mais. Todos os anúncios ainda suaves de torpor, todos os clamores de Encontro, todas as dúvidas e medos.
Ela emite pequenas verdades, testando a sensibilidade dele. Ele, olha para ela, espantado da beleza, sondando os prazeres ocultos em cada contorno que a alvidez da pele faz. A noite aconchega a cumplicidade, os passos são dados como uma dança. O próximo bourbon vai selar alguma aliança.
Ela está esperando. Ele ainda não demonstrou um olhar de mistério. É o seu mistério que a faz sentir mulher, é pertencer a um inconcebível que a assegura uma permanência em si, que nenhum homem poderá lhe tirar. Ele não dá essa garantia. Em um movimento tênue em que ela põe rápida e suavemente os cabelos em torno da orelha, ele compreende toda a sua fragilidade e força. Isso a assusta. O mistério de ser mulher, pela primeira vez, não está ao seu lado. Os olhares, pulsações e sorrisos curtos apontam para o inédito em ambos. Ela, então, espera que ele cometa algum prenuncio de horror. Qualquer. Uma pequena insensibilidade, um pequeno desprezo por um nobre sentimento. Nada. Qualquer passo adiante será rumo ao incontrolável. Não há nada nele que garanta o retorno para a mulher. Tudo nele convida para o Encontro.
Ele a contempla: seu movimento dos dedos, tão pequenos e femininos, ressoa nele um convite, nem um pouco vulgar. A vulgaridade seria uma garantia em que ela poderia deixar de importar, uma possibilidade de fuga, quando outrora foi necessário. Mas, naquele momento, a coreografia de ser simplesmente mulher e, sobretudo, Mulher, lhe remetia a um outro nível, onde ele desconhece as regras, os deveres.
O medo de ambos se torna clamor e nenhum impedimento mais é possível: nem homem, nem mulher. Todas as acontecências convergem ao Encontro.
Rastros de plenitude habitam o instante, mônadas do ser múltiplo fractalizam o cosmos, todas as mais belas canções e mais estranhos sonhos fazem sentido. Deuses são fecundados e criados por eles mesmos. Não há lugar, não há marco, só Encontro. As peles, com códigos diferentes se pertencem, se lembram. Os odores se combinam, convidados pelos sussurros, tornam-se sinfonia. Tão céu e terra. Tão. Tao.
O último resquício de individualidade era o corpo. Ela, sabendo que não mais há corpo, pois a lágrima que escorre passeia por seus contornos, pelo rosto, pelo seio, ventre e adentra o sexo com a semente: o corpo acontece Corpos. Consuma-se o uno, o cosmos se torna cosmos. O Encontro habita o mistério, soprando selvagem e suave, onde os poetas avisam que não existe "se".
Escuta-se profundamente o azul, que pulsa. Jorra-se uma plenitude. A pertencência habita cada instante, pródiga de tempo. Apreende-se que tudo sai dali e caminha para ali. A aventura do existir tinha se esquecido do óbvio, tão óbvio mistério, que lembrar é criar, sendo o cultivar inconstante da totalidade. A melancolia só conhece o gargalhar, que ressoa em cada movimento.
O Encontro lembra-se deles. Em breve, o despertar. Simultaneamente, são convidados a sair e abrigar-se no mais humilde eu, mas, também, cultivar mais e mais o Encontro. Todos os dados cósmicos se lançam mais uma vez, e não há lugar certo para cair, não existe timbre exato a respirar.
Um comentário:
Que sensibilidade, Nelson! Maravilha de texto...
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