Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

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31.7.10

A Ajudante


Tocaia. Olho pro chefe que nunca ri. Ele mira com o binóculo ultra-avançado e fica ouriçado. Olha pro relógio. Sei que é agora. Ele NÃO olha pra mim e diz “informe do satélite”, o que me faz automaticamente clicar em meu laptop e mostrar a imagem pra ele. Não há evidência de espectadores. Ele dispara o projétil que irá inocular o veneno na ex-mulher do prefeito. Em três dias ela irá morrer de “causa natural”: AVC. Só um exame muito detalhado identificaria o veneno.


Vamos paranoicamente embora do apartamento. Ele não se despede, apenas me deixa em um local menos suspeito. Vou pra casa e espero o próximo bip.


Um ex-colega de faculdade me liga. Quer marcar um encontro. Acabo aceitando por puro tédio.


- Sua tese é brilhante, você tem que dar aula, orientar alunos!


- Nãããão, eu tô me virando bem.


- Com o quê?


Dou a resposta mentirosa de sempre:


- Sou consultora de empresas.


- Mas a sua tese é em filosofia, sobre o niilismo!


- Você ficaria assustado o quanto o niilismo rende, o quanto se consome por não se ver sentido nas coisas...


- Porra, que coisa mais anti-ética!


- Ah, qualé, você prefere ficar dando aula de filosofia em colégio?


-Pega leve, bonitinha...


Talvez fosse uma cantada, mas o papo sobre ética me cansou, fui pra casa, ver um filme francês.


Tive um pesadelo, sonhei que meu ex-colega era um pseudo-galã do filme e me assassinava enquanto eu ministrava uma palestra sobre Schopenhauer. Tudo era em preto e branco, a não ser os olhos de Schopenhauer na capa do livro que eu lera uns trechos na palestra. Acordei aos berros com o telefonema de minha mãe. Esqueci do aniversário dela.


Fui correndo, ela, meus tios, tias e primos já estavam meio bêbados e cantando as canções antigas daquele cantor que ela adora, como sempre. Me senti mais estranha àquele lar do que antes, mas, não sei porquê, mais nostálgica.


Manhã. O bip. O chefe-que-nunca-ri me pega no local novo, pra “não levantar suspeitas”.


- O que vai ser desta vez, chefe?...


Acho que tô meio irônica, talvez ele fique puto.


- ...Vamos “suicidar” um jornalista, “por um enfisema fatal” em um escritor que tá escrevendo um livro bombástico ou enfiar HIV em um traveco – aquilo foi sinistro - que vai denunciar...


- Já te falei que não é pra gente conversar sobre os casos.


É, ele ficou puto mesmo. Mas não sei o que deu em mim:


- E aquela vez do cara da infecção hospitalar? Depois vi no jornal que fizeram macumba! Comé que vocês armaram isso?


- Aquilo não foi armação nossa, parece que um outro candidato concorrente que não nos contratou, mandou os pais de santo... ai, merda, falei!


- Fico pensando o motivo de vocês terem me chamado, mais pela tese ou pelo treinamento de sobrevivência que eu fiz lá na...


- VAMO PARAR DE FALAR, CARALHO!


- Ih, desculpa, não tô mais aqui... peraí, aquilo ali é a casa daquele cantor...


- Isso mesmo. Daqui a pouco vai chegar o carregamento de remédios da mulher dele. Você vai ser a pessoa que vai inserir a seringa nela. A sua roupa tá lá atrás.


- Mas peraí, quem contratou a gente?


- Você não precisa saber.


- Pô, o cara é superfamoso, eu só quero...


Ele pôs os dedos aglutinados entre as sobrancelhas, suspirou e disse baixinho:


- Os CDs estão vendendo bem menos, acharam que se a esposa morresse próximo ao lançamento, o disco ao vivo poderia render bem mais. Chega.


- Mas ele sabe?????


- Chega!


- Porra, nós vamos matar a mulher do cara, será que eu não posso ao menos saber se o cara sa...


-CHEGA!!!


Fui pra trás da vã e coloquei a roupa. Entrei na casa, um funcionário em um ridículo uniforme - que eu jurava só existir em novelas - me recebeu e levou ao quarto da esposa. Vi os troféus e discos de ouro na parede, lembrei da minha mãe cantando ontem as músicas daqueles discos. Senti um nó no peito e um frio na barriga.


Cheguei no quarto, que parecia um hospital. Ela estava fraca, e me olhou esboçando um sorriso cansado, mas me pareceu verdadeiro.


- Você... é nova...


- É, o rapaz não pode vir... como a senhora está?


- Muito fraca, minha filha, muito fraca...


Senti uma pena daquela mulher. Eu, que estava com a morte dela mais próxima na seringa. “Indução ao câncer”, putaquiupariu!


- Olha, mas isso aqui vai fazer você ficar melhor!


Como eu sou uma filha da puta!


Quando eu ia inserir a seringa, ouvi uma voz conhecida e deixei ela cair. Eu via o líquido rosado se esparramar pelo chão, como um clipe mórbido, uma música de dor e perda dele me surgiu, eu era uma coadjuvante brega em um clipe brega.


- Me desculpe se eu te assustei, querida.


Ele, o mito, colocou carinhosamente a sua mão em meu braço, fez um afago terno me acalmando, olhou em meus olhos com um sorriso e se dirigiu a esposa. Deu um beijo em sua testa e disse com ternura que eu ia providenciar outra seringa. Olhou pra mim, com calma.


- Querida, você quer alguma coisa enquanto minha funcionária limpa o chão? Um capuccino, suco, um sanduíche?


Minha mente berrava “Desculpa! Desculpa! Mas eu só vou assassinar a sua esposa mesmo”:


- Não, obrigada.


Dei um risinho sem-graça e preparei a outra maldita seringa. Minha mão estava um pouco trêmula, achei que meus olhos lacrimejavam, mas inseri o líquido fatal nas veias da mulher que o ídolo que minha mãe e meia nação amava.


Ela dormiu, esgotada e ele, agora com um olhar tristonho, pôs o braço em meu ombro e agradeceu:


- Querida, muito obrigado. Ela tem sofrido muito, mas agradeço a vocês por serem tão prestativos e pontuais.


Pedi aos céus pra um funcionário qualquer me levar até a porta, mas ele me acompanhou gentilmente. Quis pedir um autógrafo pra minha mãe, mas me senti mais que estúpida.


- É um prazer, senhor. Até breve, estimo melhoras.


Ia dizer também “nós faremos tudo ao nosso alcance para salvá-la”, mas simplesmente não consegui.


Voltei pra vã, tentando não demonstrar minha tristeza.


- Olha, falei com diretoria e você vai ser demitida. Nem precisa falar que você pergunta demais. E nem que seus telefones, e-mails, tudo na sua vida tá grampeado, se você falar qualquer coisinha, mínima que seja...


Pôs o dedo em risco na garganta, simulando a minha morte, que a essa altura eu estava quase desejando.


Me deixou em um lugar que não era de costume (como era de costume) e vaguei pela cidade, absolutamente sem sentido. Passei e uma livraria e comprei alguns livros de filósofos que eu nunca lera, porque eu considerava ingênuos com suas manias de totalidades. Tomei um milk-shake, parecia não tomar há milênios. Cheguei em casa, desabei.


Quase um mês e meio depois, vi na TV que a esposa do cantor havia falecido. Olhei pra mim no espelho, um trapo. Fui no salão, dei uma geral, liguei pro meu ex-colega convidando prum chopp e disse que estava disposta a dar aulas. Não sobre Schopenhauer.

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