Vamos paranoicamente embora do apartamento. Ele não se despede, apenas me deixa em um local menos suspeito. Vou pra casa e espero o próximo bip.
Um ex-colega de faculdade me liga. Quer marcar um encontro. Acabo aceitando por puro tédio.
- Sua tese é brilhante, você tem que dar aula, orientar alunos!
- Nãããão, eu tô me virando bem.
- Com o quê?
Dou a resposta mentirosa de sempre:
- Sou consultora de empresas.
- Mas a sua tese é em filosofia, sobre o niilismo!
- Você ficaria assustado o quanto o niilismo rende, o quanto se consome por não se ver sentido nas coisas...
- Porra, que coisa mais anti-ética!
- Ah, qualé, você prefere ficar dando aula de filosofia em colégio?
-Pega leve, bonitinha...
Talvez fosse uma cantada, mas o papo sobre ética me cansou, fui pra casa, ver um filme francês.
Tive um pesadelo, sonhei que meu ex-colega era um pseudo-galã do filme e me assassinava enquanto eu ministrava uma palestra sobre Schopenhauer. Tudo era em preto e branco, a não ser os olhos de Schopenhauer na capa do livro que eu lera uns trechos na palestra. Acordei aos berros com o telefonema de minha mãe. Esqueci do aniversário dela.
Fui correndo, ela, meus tios, tias e primos já estavam meio bêbados e cantando as canções antigas daquele cantor que ela adora, como sempre. Me senti mais estranha àquele lar do que antes, mas, não sei porquê, mais nostálgica.
Manhã. O bip. O chefe-que-nunca-ri me pega no local novo, pra “não levantar suspeitas”.
- O que vai ser desta vez, chefe?...
Acho que tô meio irônica, talvez ele fique puto.
- ...Vamos “suicidar” um jornalista, “por um enfisema fatal” em um escritor que tá escrevendo um livro bombástico ou enfiar HIV em um traveco – aquilo foi sinistro - que vai denunciar...
- Já te falei que não é pra gente conversar sobre os casos.
É, ele ficou puto mesmo. Mas não sei o que deu em mim:
- E aquela vez do cara da infecção hospitalar? Depois vi no jornal que fizeram macumba! Comé que vocês armaram isso?
- Aquilo não foi armação nossa, parece que um outro candidato concorrente que não nos contratou, mandou os pais de santo... ai, merda, falei!
- Fico pensando o motivo de vocês terem me chamado, mais pela tese ou pelo treinamento de sobrevivência que eu fiz lá na...
- VAMO PARAR DE FALAR, CARALHO!
- Ih, desculpa, não tô mais aqui... peraí, aquilo ali é a casa daquele cantor...
- Isso mesmo. Daqui a pouco vai chegar o carregamento de remédios da mulher dele. Você vai ser a pessoa que vai inserir a seringa nela. A sua roupa tá lá atrás.
- Mas peraí, quem contratou a gente?
- Você não precisa saber.
- Pô, o cara é superfamoso, eu só quero...
Ele pôs os dedos aglutinados entre as sobrancelhas, suspirou e disse baixinho:
- Os CDs estão vendendo bem menos, acharam que se a esposa morresse próximo ao lançamento, o disco ao vivo poderia render bem mais. Chega.
- Mas ele sabe?????
- Chega!
- Porra, nós vamos matar a mulher do cara, será que eu não posso ao menos saber se o cara sa...
-CHEGA!!!
Fui pra trás da vã e coloquei a roupa. Entrei na casa, um funcionário em um ridículo uniforme - que eu jurava só existir em novelas - me recebeu e levou ao quarto da esposa. Vi os troféus e discos de ouro na parede, lembrei da minha mãe cantando ontem as músicas daqueles discos. Senti um nó no peito e um frio na barriga.
Cheguei no quarto, que parecia um hospital. Ela estava fraca, e me olhou esboçando um sorriso cansado, mas me pareceu verdadeiro.
- Você... é nova...
- É, o rapaz não pode vir... como a senhora está?
- Muito fraca, minha filha, muito fraca...
Senti uma pena daquela mulher. Eu, que estava com a morte dela mais próxima na seringa. “Indução ao câncer”, putaquiupariu!
- Olha, mas isso aqui vai fazer você ficar melhor!
Como eu sou uma filha da puta!
Quando eu ia inserir a seringa, ouvi uma voz conhecida e deixei ela cair. Eu via o líquido rosado se esparramar pelo chão, como um clipe mórbido, uma música de dor e perda dele me surgiu, eu era uma coadjuvante brega em um clipe brega.
- Me desculpe se eu te assustei, querida.
Ele, o mito, colocou carinhosamente a sua mão em meu braço, fez um afago terno me acalmando, olhou em meus olhos com um sorriso e se dirigiu a esposa. Deu um beijo em sua testa e disse com ternura que eu ia providenciar outra seringa. Olhou pra mim, com calma.
- Querida, você quer alguma coisa enquanto minha funcionária limpa o chão? Um capuccino, suco, um sanduíche?
Minha mente berrava “Desculpa! Desculpa! Mas eu só vou assassinar a sua esposa mesmo”:
- Não, obrigada.
Dei um risinho sem-graça e preparei a outra maldita seringa. Minha mão estava um pouco trêmula, achei que meus olhos lacrimejavam, mas inseri o líquido fatal nas veias da mulher que o ídolo que minha mãe e meia nação amava.
Ela dormiu, esgotada e ele, agora com um olhar tristonho, pôs o braço em meu ombro e agradeceu:
- Querida, muito obrigado. Ela tem sofrido muito, mas agradeço a vocês por serem tão prestativos e pontuais.
Pedi aos céus pra um funcionário qualquer me levar até a porta, mas ele me acompanhou gentilmente. Quis pedir um autógrafo pra minha mãe, mas me senti mais que estúpida.
- É um prazer, senhor. Até breve, estimo melhoras.
Ia dizer também “nós faremos tudo ao nosso alcance para salvá-la”, mas simplesmente não consegui.
Voltei pra vã, tentando não demonstrar minha tristeza.
- Olha, falei com diretoria e você vai ser demitida. Nem precisa falar que você pergunta demais. E nem que seus telefones, e-mails, tudo na sua vida tá grampeado, se você falar qualquer coisinha, mínima que seja...
Pôs o dedo em risco na garganta, simulando a minha morte, que a essa altura eu estava quase desejando.
Me deixou em um lugar que não era de costume (como era de costume) e vaguei pela cidade, absolutamente sem sentido. Passei e uma livraria e comprei alguns livros de filósofos que eu nunca lera, porque eu considerava ingênuos com suas manias de totalidades. Tomei um milk-shake, parecia não tomar há milênios. Cheguei em casa, desabei.
Quase um mês e meio depois, vi na TV que a esposa do cantor havia falecido. Olhei pra mim no espelho, um trapo. Fui no salão, dei uma geral, liguei pro meu ex-colega convidando prum chopp e disse que estava disposta a dar aulas. Não sobre Schopenhauer.
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