Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

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13.7.10

Redivivos!

(para a versão conceitual deste conto, vá para Cosmos e Consciência: “Redivivos?”)


Noite. Mais uma vez. Vou ao cinema, no shopping. Dia de pré-estréia daquele novo filme de série de vampiros. Olhos pras adolescentes, brancas, em roupas escuras e cabelos mais ainda. Estão ansiosas, com suas pipocas gigantes e suas Cocas Light aguadas. Cochicham spoilers do filme.


Acho curioso o frissom atual em torno dos vampiros. Quando eles eram maus e sanguinolentos, apenas eu e meia dúzia de amigos esquisitos gostávavamos dessas coisas. Hoje, me lembro daquele filósofo que não gosto: o contemporâneo é marcado pelos mais tolos paradoxos: leite sem lactose, café descafeinado, cerveja sem álcool, sal sem sódio... e vampiros que podem sobreviver ao sol e não sugam humanos.


A paisagem desnatural subitamente se torna realmente sobrenatural com a chegada dela. Tinha a idade superior à média das freqüentadoras da sessão. Seus trajes também eram escuros, porém sóbrios e elegantes. Sentou ao meu lado e olhou tristemente para a tela. Sua pele tão branca contrastava com suas vestes. Todas as alegorias adolescentes que minha pseudo-experiência antropológica clamava, deixaram de interessar. Havia alguém ao meu lado que atraía cada ínfimo de minha atenção. Observava a lentidão de seus movimentos, um tédio secular, um pedido de socorro mudo, opaco.


O filme começa. Imagino que, se a censura não atrapalhasse as bilheterias, a protagonista iria jantar com o vampiro e iria ao motel com o lobisomem. Ouço suspiros e gritinhos na sala, que ressoam como os que eu faço em silêncio, pela silhueta ao meu lado.


O filme acaba. A relação dos protagonistas não passou ainda de uma propaganda subliminar para os mórmons. Junto toda a coragem que tenho e pergunto pra ela se gostou do filme. Ela me olha lentamente, com seus olhos castanhos-claros com um brilho fosco olhando profundamente não pra mim, mas para a minha alma, oculta até a um segundo antes, de mim. Então, ela realiza um esboço de sorriso, nem sensual, nem puro: um anti-sorriso:


- É inverossímil, mas tem alguma beleza.


A sua voz me espantou, pois se misturou à memória dos sinos soando no velório de minha avó. E a sua resposta, tão perfeita, me pareceu uma boa-vontade inesperada, visto a circunstância da pergunta. Senti um frio no corpo, que persistia, antevendo a minha investida:


- Eu não resumiria melhor! Olha, você gostaria de... sei lá, tomar um café comigo?


Quando disse “café” me senti ridículo por não dizer “chopp”, mas ainda assim, me pareceu mais adequado. Ela sorriu, talvez com alguma ternura:


- Acho que não...


E foi descendo as escadas. Entristeci soberbamente, não sabia que poderia mudar de estado tão rápido. Guiei-me pelo “acho” em sua resposta e a segui. O shopping já estava fechado, mas ela parou diante de uma perfumaria. Todas as células de meu corpo se contorciam. Aproximei lentamente, ela apenas olhou de lado, sem mexer o pescoço.


- Acho difícil achar um perfume pra comprar a essa hora, talvez no Free Shop...


Ela sorriu, dessa vez o sorriso pareceu mais límpido, um pouquinho mais:


- É verdade...


- Mas, com certeza, tem muitos restaurantes abertos...


Ela me olhou, dessa vez muito séria, como se eu cometesse um grande pecado. Tentei dar leveza à situação:


- Olha, eu apenas quero conversar com alguém que possa dar uma apreciação consistente sobre um filme teen de vampiros.


Ela recolheu-se e pensou, parecia ter muita coisa em jogo. Olhou pra mim, e, com muita coragem disse:


- Tudo bem, então.


Sem saber direito o que estava acontecendo, fomos a um restaurante e pedi vinho. Reparei que ela levava a taça a boca, mas apenas molhava. Fantasiei que ela tinha vergonha de se assumir alcoólatra, ou algo assim.


Conversamos muito sobre filmes de vampiros, ela era surpreendentemente muito mais versada do que eu. Encantava-me o seu jeito, triste, profundo, distante, mas se aproximando. Comecei a falar que era médico e que pesquisava células-tronco, ela, ao mesmo tempo que se interessava, se entristecia. Eu estava preso em uma armadilha de interesse e dor e não sabia como sair. Peguei sua mão, gélida. Ofereci meu casaco, perguntei se o ar condicionado estava forte, ela disse que não. Segurei mais forte a sua mão, ela me olhou com medo e algo mais - torci para ser desejo. Beijei-a lentamente, me senti em uma névoa, não era uma paixão ardente, era como se beijasse a própria eternidade, fria.


Ela correu a língua em seus lábios, seus olhos tinham amor e medo. Me olhou novamente pra alma e começou a chorar. Suas lágrimas eram diferentes, opacas, quase escuras. Peguei o seu pulso pra consolá-la e constatei que ela não tinha pulso. Toda a realidade se revirou e percebi a situação. Olhei para ela e disse sem pensar, apenas sentindo um crescente turbilhão em meu coração:


- Eu não me importo. Mas farei tudo ao meu alcance pra te trazer novamente à vida.


Foi então que a minha vida se modificou drasticamente. Atendia pouquíssimos clientes, apenas o mínimo para o sustento, e fazia enlouquecidamente uma pesquisa com células-troncos pra trazer vampiros de volta à humanidade.


Chegou o dia e fiz a inserção nela. Foi o momento mais terrível de minha vida. Ela rejeitou parcialmente o tratamento e ficou muito doente. Ela não me culpava, mas pra mim, era insuportável sua dor.


Coloquei todas as possibilidades diante de mim. A ciência que eu conhecia - e conhecia bem – não dava conta do problema. Foi então, que, relutantemente, persegui auxílio espiritual. Gastando toda a minha reserva, levei-a a um alquimista no Tibet, que deu banhos sagrados a ela, ervas, incensos, cânticos. Ela urrava, chorava e clamava por mim. O alquimista me disse:


- Eu jamais faria algo assim. Ela é uma aberração da Natureza, mas o seu amor por ela é a própria Natureza. Os sábios ancestrais me indicaram que eu deveria, milenarmente, abrir uma exceção. Fiz tudo o que a minha magia poderia fazer. Cabe agora o seu amor e sua ciência fazerem o resto. Podem ir.


Ela estava quase definitivamente morta. Voltei para a cidade e fiz uma derradeira aplicação de células-tronco, agora, com as mais avançadas técnicas. Em um último momento de consciência ela me olhou, de uma forma inédita:


- Não se culpe por nada. Buscar a vida uma última vez foi um privilégio único. Sou grata. Te amo.


E dormiu, quase à morte, por dias. Quase enlouqueci. Ou enlouqueci totalmente, por alguns dias. Na madrugada do sétimo dia, ela acordou. Dei frutas e ela não rejeitou. Lentamente, fui acrescentando água, cereais, legumes, verduras. Ela esta curada, mais fraca.


Ela sorria lividamente. Seu sorriso era uma dádiva que contorcia de felicidade as minhas entranhas, várias vezes ao dia. Éramos um casal humano, andávamos de mãos dadas ao sol.


O diagnóstico de leucemia viria poucos meses depois. Ela aceitou com uma sobriedade sobre-humana. Vivemos o nosso amor a cada segundo, de alegria e dor. Em seu leito de definitiva morte, ela me olhou com uma ternura extrema:


- Vivi os dias mais felizes e as dores mais extremas. As dores foram um nada cercada de alegrias. A morte não me dá medo, já a conheço. O que vivemos é eterno e isso me basta. Natural que eu adoeça, já vivi por tempo demais, a humanidade em mim estava cansada, mas o amor em mim transborda no tempo. Sei que você vai chorar e se sentir só, mas, quando tiver uma chance, ame novamente, em homenagem a mim, à Natureza, à vida. Isso é tão belo e sagrado e você me proporcionou algo que eu jamais poderia ter sem você. Mereça a sua felicidade, porque a minha você já causou.


Ela se foi, e, dentro do possível e um pouco além, eu a obedeci.

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