Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

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26.11.10

Bar Flexus ou A Evidência do Turvo

Guimarães Rosa diz que corro risco de vida. Mas Philip Dick me confessa que não existe realidade. Fiquei com ambos.


Esse trabalho de investigador na polícia veio meio por acaso, porque eu achava ser advogado um saco. Aguentar aqueles clientes mal amados e mau comidos reclamando de pensão; fulano comeu a empregada, mas que com ela não dava mais no couro; assédio moral no escritório: putamerda.


Ser investigador pode ser um saco também, se você deixa a falta de recursos te impedir. Claro que passo apertos. Mas e daí?


Só que fiquei entediado de novo. Chega uma hora que você gostaria de um pouco de sofisticação nas mentes criminosas, nos paradoxos morais que os conflitos humanos impelem. Mas, ultimamente, a coisa tem estado meio morbidamente boba.


Meu chefe me ordena investigar uma chamada de uma mulher que dizia saber quando seu vizinho ia matar alguém. Falo com ela pelo telefone:


- Ele vem berrando, mora sozinho, disse que de hoje não passa, que tudo acaba hoje, aimeudeusessaspessoasquenumtemninguémjesusamado...


Minha senhora, calma, ele taí?


- Num deve tá não, foi trabalhar, deve voltar daqui a algumas horas.


Sei.


- Moço, pelarmodedeus, faz alguma coisa.


Minha senhora, se ele não estiver aí...


- O senhor deve encontrar ele naquele bar, méqueéonomemesmo... Fecho, Flecha,


Flexus?


- Isso mesmo! O senhor conhece?


Claro que conheço. OK, deixa comigo.


Que que o tédio faz com a pessoa. Chego perto do Flexus. Tá meio vazio ainda. Dou uma olhada de longe, nada suspeito. Tem um cego, próximo a entrada, que vende balas. Decido recorrer a ele. O senhor ouviu alguma coisa estranha por aqui ultimamente?


- Me desculpa, num sei de nada.


O senhor pode ficar tranqüilo, só tô querendo saber mesmo.


- Olha, ultimamente, tem um cara bêbado que fica ameaçando de matar...


Hum... e o quê mais que ele disse?


- Olha moço, um monte de besteira, mas ele diz que antes vai comprar o livro.


Que livro?


- Aí, o senhor me pegô...


Vou pra livraria mais próxima. Acho estranho entrar na livraria de óculos escuros, mas quer saber? Foda-se.


Boa tarde.


- Já é boa noite, né? Em que posso ajudá-lo?


Você soube de algum comprador bêbado, dizendo loucuras aqui esses dias?


- Aaahhh... claro, não foi eu que vendi não, mas a moça que vendeu tá no estoque e já volta. Parece que ele comprou um exemplar de... um livro de psicanálise, de uma autora...


Melanie Klein?


- Acho que é isso mesmo, disse que ia ler e acabar com tudo, algo assim.


E quê mais?


- ... olha, a vendedora já deve tá vindo... tem uma história de uma igreja...


OK, obrigado. Sigo pra igreja mais próxima. As pessoas estão chegando no culto. Sento como se fosse participar, perto de algumas beatas que fuxicavam:


- ... pois é, minha filha, cê não sabe, falaram que ele disse pro padre que não dava mais, que ia acabar em breve, em morte mesmo. O padre tinha acabado de rezar a missa e conversou com ele, mas parece que ele não saiu daqui muito bem não.


Saio da igreja. Esse caso tá me dando nos nervos. Passo no mercado e compro cervejas, vinhos e nuggets. Hoje eu não bebo no bar. Quero ficar completamente sozinho.


Chego em casa, acendo um baseado e bebo uma cerveja. Frito os nuggets. Quando começo a sentir que to ficado chapado, pego o “Inveja e Gratidão” recém comprado pra ler. Vou lendo e uma palpitação vai me dando, me consumindo, lembro da delegacia, do bar, da livraria, da igreja. Vou lendo, bebendo – passo pro vinho – fumando. O trabalho na polícia me remete ao pior do ser humano, eu pensava. Mas acabo concluindo que O SER HUMANO É ISSO MESMO. NÃO VEJO MAIS SENTIDO EM NADA. Toca a porra do celular.


- Falaí, num vai pro Flexus hoje não?


Não. Fala logo o que você quer.


- Aquela mulher ligou de novo. Disse que o vizinho chegou e já começou a berrar.


Manda ela tomar no cú.


Desligo e olha pra janela. O ar da noite é desafiador. Mais um gole, um parágrafo e um dois. Tô ficando muuuuito doido e muuuito FUDIDOOO! Agora toca a porra da campainha. É a minha vizinha, chorando.


- Oi, olha... eu tô ouvindo você gritar. Não sei mais o que fazer, liguei até pra delegacia.


Sei.


- Melhor você tomar um banho...


Você que fudeu com tudo! Não me vem encher o saco agora!


- Cê sabe que eu não posso...


Então não devia ter começado! MERDA!!!


- Ai meu deus...


Ela volta a chorar compulsivamente. Olha pra janela. É agora! Corro pra janela pra me jogar. TUDO ACABA HOJE!


Ai! Me corto todo na janela, olha pro lado, a vizinha chorando, me olhando desesperada. Tentei me jogar e ela segurou. A evidência do turvo. Ou melhor, mais turvo, turvo de outra gradação. Turvo, turvo.


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