Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

Índice

ÍNDICE: textos

Pesquisar este blog

6.12.10

A Limpeza do Mundo no Bar Flexus


O maior privilégio da neurose é o surto controlado.


O crime, por exemplo: a humanidade vem se matando desde sempre, o horror de tirar uma vida quase fica banal ao longo da história. Pensei que o serviço na polícia ia me sedar em relação a esse horror, mas não. Olha isso agora: mãe assassina filho viciado em crack. Que merda!


Investiguemos. Podia-se dizer que foi legítima defesa, mas o olhar da mãe era algo aterrador, parecia algo de missão cumprida, ainda que com alguma dor. Vejo a Bíblia, uma casa de classe média baixa, provavelmente evangélica. O filho, de 29 anos, levou uma porretada na cabeça. Ela usou – putaquiuspariu – a mesinha de passar ferro na cabeça dele. Vizinhos diziam que ele era um perdido e que ela era uma santa, que jamais poderiam imaginar que ela fizesse isso etc., etc.


Interrogatório: a máscara anterior já tinha se dissipado um pouco, ela esboçava um choro. Sim, era evangélica. Sim, ela deu uma porretada com a mesinha porque ele ameaçou matá-la. Ela tentou de tudo nos últimos anos etc, etc. Mas Deus ordenou que ela o matasse. A epifania religiosa deveria ser um surto controlado, mas nesses casos se torna puramente surto.


Em nossa hipótese, ele estava dormindo, ou, mais provavelmente doidão, quando ela o assassinou. O cara tava seco, parecia um demônio de filme B.


Quando o caso parecia encerrado me surge a porra de um ex-pastor na delegacia. Ele dizia que foi a irmã do rapaz que induziu ao vício. Ele sabia de tudo porque era pastor e comandava a igreja que a família freqüentava. Não me segurei e perguntei porque ele era EX pastor, reparando umas pulseiras nele que o pessoal de candomblé costumam usar. O figura me olhou com uma cara de espanto e falou que a religião era pra salvar almas, não pra inventar a perdição. Na visão do cara: os pastores criam reserva de mercado pra sua igreja suscitando demônios que eles mesmos, em seguida , exorcizam.


Fui falar com a irmã.


Aquilo não era uma casa. Moravam umas cinco “pessoas”, todas viciadas: tinha pó, maconha, cachaça, mas principalmente sujeira e fedor. Quando dois me viram e ameaçaram fugir, eu berrei e disse que não estava ali por causa das drogas, mas pela morte do irmão de uma das moradoras. Ela estava sobre efeito de maconha e álcool, coisa que eu conheço bem – fazer o quê? Meu surto controlado... – chorou um pouco e disse que só apresentou o baseado pro irmão, que de resto foi por conta dele mesmo. Mas eles têm esse tipo de comportamento em função de abusos sexuais pelo pai em ambos. A mãe fingia que não via. Ela não vê a mãe há anos e o pai tá no hospital definhando em câncer no pau. Caralho, heim?! Literalmente! Disse pra eles procurarem um CAPES, deixei o endereço do mais próximo e fui embora.


Cheguei no Bar Flexus e a galera já tava lá, mas esqueci que era dia de jogo. Não suporto dia de jogo: tomo mundo se apertando em torno daquela TV berrando enlouquecidamente. O futebol é o surto controlado mais socialmente aceito, acho. Tomei um chopp tentando conversar com aquela gostosa que freqüenta o bar, mas ela tava misturando com antidepressivos, eu não entendia nada do que a moça falava: ela, grogue e o povo berrando como animais. Pedi uísque pra ficar doido mais depressa e fui pra casa.


Fui ver o pai do menino no hospital, mesmo de ressaca - misturei de novo, isso sempre dá merda - . O aspecto do cara ainda vivo tava pior que o do filho, eu quase não ouvia sua voz. Ele dizia que abusou dos filhos sim, mas que os amava, aconteceu porque foram ordens do demônio, que agora se sente salvo, o pastor vai sempre lá rezá-lo e por aí vai. Microlágrimas se intimidavam em seus olhos. Uma configuração de assombrar: um pedófilo incestuoso endemoniado supostamente arrependido às portas da morte. Eu fiz menção de ir embora, ele começou com alguns gemidos, queria dizer mais alguma coisa. Ele sussurrou que ouviu as enfermeiras conversando, quando elas achavam que ele tava dormindo, uma história que o traficante da boca perto da casa deles é que viciou o rapaz no crack, chegando até obrigar ele a fumar.


Fui pro Flexus, tentando entender a conversa do povo em relação ao jogo de ontem, mas as falas pareciam sempre as mesmas: “juiz fédapulta ladrão”, “não sei como ele errou aquele pênalti”, “parece que ele não jogou bem porque descobriram outro filho fora da casamento” etc., etc. Mas minha cabeça ficou naquelas palavras do pai. O cara era um bosta, mas minha intuição me dizia que tinha alguma coisa a ver em relação ao que ele disse.


Voltei pro hospital. Perguntei pelas enfermeiras que atendiam o velho e cheguei a uma que conhecia bem a família. Ela empalideceu, eu tentei acalmá-la. Depois de alguma relutância, começou dizendo que o cara da boca tinha como hábito usar drogas com alguns, com objetivo – dizem - de viciá-los. Ela deu o apelido e o ponto, mas chorou pedindo pra ficar com o seu nome de fora. Eu disse que tudo bem, mas eu bem sei que “tudo bem” é uma utopia. Acreditar que as coisas vão ficar bem por si só é o controle do surto...


Fui na boca, não é que o cara me viu e saiu correndo? Esse pessoal tem uma intuição quase sobrenatural pra descobrir “us hômi da lei”. Saí correndo atrás dele, mas o rapaz, só pra variar, corria muito mais do que eu, principalmente depois do meu ferimento no incidente com a minha janela, tô meio trôpego. Só que o fídamãe tentou pular um muro e caiu, eu apontei a arma pra ele. Gritou “Perdi!” e levantou as mãos. Perguntei do falecido rapaz do crack. O traficantezinho de merda começou a chorar e disse que o líder do tráfico no morro, que ordenou essas coisas. Ele devia dinheiro pro cara pra pagar o tratamento da mãe, que tinha um problema sério no rim. Eu comecei a ficar tonto e puto da vida, ou melhor: puto com a vida. Larguei o elemento pra lá, não prendi, não disse nada.


Fui quase errante pro Flexus, meu suposto locus de surto controlado. Mas talvez fosse o contrário: o mundo tá surtado e lá eu fico são. Com essa esperança, sentei lá, pedi uma caipirinha. Troquei umas idéias com um chapa e ele tentou me convencer que eu deveria correr atrás do traficante. Eu disse que era impossível, que tinha que ser um esquadrão blábláblá. Ele retrucou falando que qualquer um dá mole uma hora.


No dia seguinte, me interei daquele traficante. Fiquei sabendo, depois de correr todos os cantos daquela porra de delegacia que o cara ia de vez em quando num puteiro na Zona Sul, ele gostava de ver e escolher as moças pra suruba. Sonhei a impressão que tive uma grande idéia, mas no fundo, achei que surtei de vez mesmo.


Fui pro puteiro e entre umas e outras perguntei do traficante. Uma lá acabou falando, mas só porque ela nunca era escolhida. Disse que ele deveria vir dali a três dias. Já que tava lá, paguei por um boquete, mas nada de conseguir gozar. Eu tava ficando é muito estranho mesmo.


Voltei lá então, no referido dia. O pilantra tinha acabado de chegar, tinha só uns capangas com ele. Os caras tavam meio entretidos com as putas, o lugar dichavava tudo, eles estavam despreocupados. Quando ele entrou no quarto com uma puta, supostamente pra “experimentar”– e deu mole de ir sozinho – pensei ser a sorte grande e fui atrás. Fechei a porta do quarto e disse pra puta ficar quieta. Interroguei o cara com a arma na testa dele sobre o lance de viciar os moleques. Ele me falou que fazia isso porque tinha uma pressão fudida pra aumentar os negócios por aqui de um mega esquema envolvendo políticos , empresários de São Paulo e a Bolívia. E pra completar, contou uma história fudida: foi expulso da escola logo depois de arrumar confusão depois da morte do pai, do exército por ficar doidão com freqüência depois da morte da mãe e de pequenos empregos porque começou a faltar depois da morte da irmã, só tinha sobrado o tráfico. Ordenei o cara a ir comigo até a saída do puteiro, que não ia fazer nada, só pra garantir a minha saída. Fui até lá, os capangas me olharam com uma cara dos diabos, os seguranças, com espanto e as putas, com uma quase indiferença, devido provavelmente ao seu niilismo inerente. Mas fui embora rápido, sem maiores problemas, ao menos até agora.


Na madrugada, com o Flexus fechando, e eu, o último no bar: até a gostosa dos antidepressivos já tinha ido. Olhava pro empregado lavando o chão, com os restos de dores e grunhidos dos freqüentadores e fractalizei pra mim que aquela água limpava não só o bar, mas o mundo. Decidi não trabalhar mais naquele caso e em mais nenhum.

Nenhum comentário: