Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

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2.1.11

Colecionando Epifanias no Bar Flexus


Muitos casamentos estão mais pra harmonia de neuroses do que cultivo de amor.


Vejo a gostosa dos antidepressivos falando comigo aqui no Flexus. Sempre sozinha neste bar, fumando seu cigarro argentino, um olhar de sereno apocalipse:

- Porque que você largou a polícia?


Perguntinha simples e complicada, essa. Poderia dar um zilhão de respostas, todas, como diria Gödel, incompletas ou inconsistentes. Respondi assim, quase sem pensar (um amigo meu budista adoraria isso, quando eu contei pra ele, depois):

- Tudo é muito enquadrado, um mundo simples de bem e mau, mas que esconde uma enorme gradação, muito difícil de lidar com um mínimo de autenticidade. E, depois de ter parado com aquilo, venho colecionando epifanias.


Resolvi me vingar da pergunta difícil:

- Porque você não larga o seu marido?


Ela olhou triste pro nada, nada do mundo e da sua vida. Em sua sutil ritualização de uma tentativa de resposta sincera, abriu um maço novo de cigarros argentinos, acendeu um, tragou, explorou as formas da fumaça com tristeza e espasmos de curiosidade, deu um longo, demorado gole no seu vinho e suspirou, carregando a galáxia:

- Ele era carinhoso, sorridente. Sei hoje que o sorriso era amarelo, ele sempre posando para fotos imaginárias que eu “tirava”. Suportava com compreensão minha TPM – que, diga-se de passagem, é algo aterrador, e muito mais aterrador quando alguém diz isso pra mim que não seja eu mesma – e claramente tecia um plano diabólico de eternidade comigo: envelhecer juntos, filhos, netos, aquela coisa, cê sabe. No primeiro surto dele, eu quase me diverti, ele achava que nadava no cosmos e eu era um buraco negro (algo assim). No segundo, ele quebrou meus vasos, rasgou minhas roupas, no terceiro, me espancou - eu era um “demônio”, essas merdas. Ele se aposentou por invalidez, iniciando um processo inconstante de internações, ficando muito dopado. O resto, você sabe.


Até então, ela não tinha me respondido. Algo em meu olhar denunciou isso. Ele repetiu o ritual tragada-gole-suspiro de forma quase idêntica e continuou:

- Claro que pensei em abandoná-lo. A gente praticamente não trepa, e quando trepa, eu penso no diabo a quatro pra poder gozar, isso quando eu gozo. Desistimos dos filhos, ele fica fumando e vendo TV, além de ter adquirido uma fé de brinquedo. Mas os surtos deles, sua suposta “acusação” que eu sou o demônio, me faz, sei lá, querer consertar as coisas...


Claro, ela não falou do medo. Medo terrível da vida desconhecida sem aquela vida. Ela quase não tem amigos, nem muitos parentes em que possa se ancorar. Ficar casada com um fantasma e beber por aí é o melhor que ela pode fazer, apesar de ainda ser uma mulher bonita.


Olhando pras formas evanescentes da fumaça, refletiu:

- Eu comecei a fumar depois que ele foi internado a primeira vez. Ele voltou fumando porque o cigarro tira um pouco a sensação de estar dopado. Eu fui solidária no vício.


Pegou uma cartela de antidepressivos e tomou um com vinho. Cada cigarro e comprimido que ela usava eram pequenos tributos a sua conformidade com aquela vidinha.


Nossa conversa cravava a noite, a intimidade da co-presença no bar ainda que solitária, se transformou em dois pré-desesperados em comunhão. O entorpecimento do álcool foi tramando uma maior atração por ela. Fui no banheiro e mijei minha covardia. Olhei pro espelho e vi aquele cara quase-eu, me tornando um arremedo de coragem. Sentei ao lado dela, com um olhar confuso e sério e a beijei. Seus braços permaneceram colados ao corpo, como se ela simplesmente correspondesse aos meus impulsos – e não aos dela: uma forma escrota de se envolver pela metade. Então, meio impetuoso, a coloquei em meu colo e a obriguei a ter mais contato corpo-a–corpo. Ali, ela desistiu em não se afirmar. Afastou o rosto e olhou pra mim, buscando algo como cumplicidade. Eu tentei brotar em mim alguma ternura, ela cedeu e nos tornamos um casal de bêbados, cúmplices das maldições da madrugada.


Nossa “performance” começou a ficar constrangedora até mesmo pro nosso grau etílico. Sugeri, enquanto calhorda e cavalheiro ao mesmo tempo, que fôssemos pro meu apartamento.


- Não, por favor, vamos pro meu.

- Mas a porra do seu marido...

- Com a quantidade de remédio que toma, ele só vai fazer alguma coisa diferente de respirar lá pelas dez da manhã.


Eu, torpe de tesão e uísque, aceitei aquela insanidade.


Quando passamos em frente a igreja, ela fez um sinal da cruz. Eu ri, trôpego, de como sua fé era um componente de fragilidade. Chegamos naquele apartamento triste, com quadros de mau gosto e best-sellers nas prateleiras, fomos pro escritório, que havia se tornado uma espécie de depósito. Vi a silhueta do marido no quarto ao lado, roncando de leve, de pijama listrado, presidiário de si.


Uma poodle se aproximou da gente, me olhando assustada e com raiva, mas não latiu. Sua dona apenas sorriu, acariciando e dizendo o nome do bicho, parecendo falar pra uma criança com retardo, enquanto eu sonhava que ela pedisse pra cachorra se retirar, mas eis que a madame preferiu que a poodle fosse testemunha de nosso crime imperfeito: ter alguém mudo que soubesse e não contasse pra ninguém. Estranhos esses donos de cachorros. Querem dizer que suas mascotes são “os melhores amigos do homem”, quando me parece que são totens inversos que babam inevitavelmente pelos seus "chefes". Os donos de cachorro querem “amigos” ou uma simplória e inquestionável devoção?


Ela tirava suas roupas, as minhas e beijava, bufando.


Meu tempo pára. Algo do meu moralismo desgastado, do meu medo, do meu constrangimento, estanca o meu desejo. Diante do meu pau mole, ela me olha com reprovação, não da minha mísera virilidade, mas da minha ausência na cumplicidade de seu ato cruel. Eu imaginava como os nossos suspiros adentrariam o inconsciente do marido e aquilo tudo, em breve, comporia a alquimia de um novo surto. Mas o boquete arfado e urgente me fez esquecer disso tudo, então, diante da poodle, nós faríamos encontrar o céu e a terra, compondo um encontro de dois restos que ensaiavam completude.


Depois, me deu muito sono e cansaço. Ficava, então, entre prolongar as carícias e os olhares e ir pra casa desabar. Fiz, é claro, um pouco dos dois. Acordei na sala do meu apartamento, de tênis sujo e ressaca.


Enquanto fazia o café, via as notícias na TV, mulheres de tailleur no poder, acenando masculinamente. É um começo.


Meu celular zombe horrendamente, tortuando um resto de manhã que deveria ser calmo:

- Oi... te acordei?

- Não. E aí?

- Tô ligando do banheiro: meu marido tá péssimo, dizendo que eu sou súcubus. Já chamei a ambulância.


Eu ouvia, ao fundo, os berros ensandecidos. Eu sou o profeta e não aprendi a amar:

- Você quer alguma ajuda?


Torci pra ela responder o que acabou respondendo:

- Não, acho que só pioraria as coisas. Eles já estão acostumados, devem estar chegando. Ai, essa vida... E você... e suas epifanias?


Pergunta estranha em momento inadequado. Típico. Respondi, desliguei e fui pra rua:

- Meu dia começa agora, com bilhões de possibilidades. Uma epifania é possível se eu estou aberto e inteiro pra ela. É o que eu faço agora.

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