Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

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13.1.11

Bar Flexus Onírico




                                      Imagem por Claleal

A crença na dicotomia entre sonho e realidade é pura preguiça sensorial.
Eu aqui, acordando e vomitando meu ontem, componho involuntariamente uma imagem surreal, um pesadelo acordado. Milênios de civilização, milhões de anos de suposta evolução e cá estou me olhando no espelho inchado, suando, babando bílis e de olhos vermelhos, com as veias dos meus olhos explodindo a minha incompetência existencial.
Tomo um longo banho, ele limpa mais o corpo que o resto.
Lembro vagamente que deixei meu celular em casa, fingindo pra mim mesmo que o mundo podia interferir em minha jornada rumo a coisa alguma. Cinco ligações da polícia e uma mensagem de voz. Esse fantasma do passado me faz esboçar um novo vômito, mas eu seguro a onda.
A mensagem é pra que eu apareça na delegacia que o chefe quer falar comigo. Ah, vão se foder!
Toca a campainha. Sinto como se o universo estivesse fazendo um complô contra mim. Atendo a porta e me aparece a porra do secretário do meu ex-chefe.
\- Cara, cê tá péssimo.
- Tô parecido com a sua mãe?
- Pega leve, cumpadi. O chefe pediu pra eu te mostrar isso aqui.
- Cara, eu pedi demissão, não tô a fim!
- Ele disse que tá disposto a terceirizar o seu serviço, paga como se fosse um salário normal, mais 10%.

Odiei ter olhado pras contas de empréstimo a apagar na mesa e odiei mais ainda me sentir um bosta. Peguei a pasta.
-OK, diga pra ele que eu vou dar uma olhada e respondo amanhã.
- Não, hoje!
- Como assim, caralho?!!!
- Cara, é um caso graúdo, a garota apareceu morta, é filha de gente rica e a imprensa tá em cima. Ninguém conseguiu nada, você é a última esperança. Disseram que o caso tem a sua cara.

Pelo visto, a coisa é séria mesmo. Agora, quando alguém diz que “o caso é a minha cara” não sei se fico mais preocupado com o caso ou comigo.
- OK. Té mais. Cê quer uma água?
- Não, cumpadi. Té mais.

Que alívio.

Olhei a pasta. Quando vi as fotos da garota, vinte e seis anos, linda, caída do quinto andar. Nenhuma pista. Pai, mãe e irmãos são os únicos em casa, na madrugado do incidente. Não sei porque, esse caso me tomou. Tentei relaxar, ler, ver TV, nada tirava a minha cabeça daquilo. Tomei um Dorflex e fui pra delegacia.
- Téquenfim, heim?
- Fala, chefe.
- A coisa tá foda! Vê o que cê pode fazer que eu te garanto o adiantamento do seu Fundo.
A coisa ta séria mesmo.
- Pelo que vi nas fotos, tinha um papel na mão da garota...
- É a porra de um diário, alguma coisa assim, um bando de coisa sem nexo, essa menina devia ser meio maluca, mas nenhum histórico psiquiátrico, uma vida social normal, aparentemente era uma pessoa querida por todos...
- O psicólogo que trabalha pra vocês já analisou o diá...
- Aquele merda não conseguiu nada!

Peguei o diário e documentos da polícia. Aquele ar viciado da delegacia nunca me fez tão mal. Estava muito distante daquilo tudo, mas atraído pra lá, um imã decerebrado. Sentei em uma sala isolada que me arranjaram e comecei a ler o diário. Era realmente muito estranho, falando de prostitutas velhas fãs de filme de comédia, festa de imigrantes em boates, usuários de crack fazendo terapia de casal, trabalho de faculdade sobre Rosa- Cruz com professores vulgares, um livro sobre Leibniz sendo escrito em um bar... mas que mulher mais louca! Nada disso faz sentido algum! Reparei que cada trecho tem uma data, é escrito regularmente umas 3 vezes por semana. Mas ninguém pode ter vivido isso tudo. Não havia como...

Peguei a única “prova”: o papel do diário que estava arrancado, na mão da garota ao morrer, datado de 1 semana antes de sua morte: “Trabalho na investigação da menina morta. Muito lixo. A pista de quem matou está aqui. Muitas mortes são assim.

Que porra é essa??? Sinto o arrepio em partes do corpo que eu nem sabia existir. Olho na pasta e verifico que a garota caiu no lixo do seu condomínio. Meu coração para e dispara, sinto simultaneamente. Verifico os depoimentos da família, nada demais, apenas estão atônitos pelo ocorrido. Sem impressões digitais no quarto, mas com sinais de luta.

Vou ao apartamento chique da família. Todos desolados, minha rápida conversa confirma praticamente tudo que está nos registros. Vou pro quarto dela. Bom gosto. Muitas roupas, a maioria sóbrias. Alguns livros: Lévi-Strauss, Roy Wagner (ela era antropóloga recém-formada, então, OK), Perec (literatura não faz mal a ninguém... ou faz?) e... Cornélio Agrippa? Esoterismo antigo. Interessante. Ligo o computador. Textos de antropologia, monografia sobre algum tema de Mauss. Fotos das amigas e do namorado. Nas câmeras do prédio não revela a visita ou entrada de ninguém a não ser a família, mas o comportamento de luto deles é tão padrão... Decido ver o tal namorado.

O rapaz tinha dois anos a mais que a garota, era pálido e aparentava sim, alguma tristeza pela morte da namorada. Trabalhava como webmaster, tinha um blog sobre ocultismo e morava sozinho, em um apê bem menos luxuoso que o da namorada.
- O senhor não é o mesmo de ontem.
- Não, não. O pessoal me pediu uma ajudazinha.
- É. Foda. Nem sei mais o que dizer...
- O que ela gostava de fazer, vocês dois juntos...

Ele foi tão óbvio que até cansou: cinema , barzinhos, festa na casa de amigos.
- Ela tava lendo um livro do Agrippa.
- É, a gente gostava de discutir esses assuntos. A tese dela era sobre rituais indígenas que envolvem magia, eu tinha alguma coisa sobre isso.
- Mas vocês tinham alguma prática?
- Nããããão... quer dizer, ela ia tentar mestrado e poderia haver algum trabalho de campo, mas ela só foi visitar até então candomblé, benzedeiros, coisa normal. Depois da monografia ela foi se afastando disso.
- Sei. E você?
- Olha, eu... a gente... porra, o quê que isso tem a ver, heim?
- O caso dela é muito complicado. Não existem suspeitos, houve sinal de luta, qualquer coisa ajuda.

Ele engoliu em seco, meio desorientado.
- A gente começou a estudar juntos umas práticas mágicas de meditação, viagem do corpo astral, mas nunca conseguimos ir muito além.
- Sei. E ela tinha uma espécie de diário, tinha uma folha arrancada na mão do cadáver.
- Não sei nada sobre isso.
- Mais alguma coisa?
- Não, acho que não. Ela vinha se queixando que acordava fora da cama, às vezes. Sei lá, se ela quando ela bebia...

Fui atrás do orientador da monografia. Ele me recebeu em sua sala na universidade, tipo meio excêntrico, cabelos grisalhos esvoaçantes.
- Ela tinha boas idéias. Sugeri que fosse em um ritual comigo aqui mesmo, na cidade, com uns nativos que eu já tinha trabalhado em minha pesquisa etnográfica. Vinham pra um evento.

Ela ficou muito impressionada, mas não desenvolveu o tema. Ficou citando apenas os autores, e fez um trabalho mediano, mas muito bem escrito. Era muito querida pelos colegas.
Fui pra casa, com mais dúvidas. Fiquei lendo o “diário”, que tornava cada vez mais labiríntico o caso. Reli os trechos em que as letras foram escritas com mais força: “Vejo minha versão mais feia, com coisas velhas, milenares, no baú. Ela me obriga a seguir no túnel. Eu não QUERO.” e “Minha versão, em trajes púrpuras muito escuros, ri de mim. Ela diz, ‘é inevitável, inevitável...’.” Aquele arrepio de novo. “Ela entra em mim. Somos uma. Uma! UMA!”.
Entro no Bar Flexus. Lá está a garota, em uma mesa, sentada sozinha, tomando alguma bebida cor de terra. Ela olha pra mim, serena e me mostra seu diário.

Acordo de sobressalto, as idéias vindo à tona ao mesmo tempo, me deixando tonto e alerta, se é que isso é possível. Corro pra delegacia.
- Cê tá ficando maluco?
- Ainda não, chefe. O diário é um caderno de sonhos da garota. Demorei um pouco pra entender. Por isso, tanta coisa estranha, desconexa. Não existem suspeitos, mas tem sinais de luta no quarto. Ela se queixou pro namorado que vinha acordando fora da cama. Estudava temas ligados à magia que visivelmente incomodavam-na, mas namorava um cara que se interessava no assunto, então ela vivia o tema, mesmo sem querer, quase que o tempo todo. Participou de rituais, tentou experiências de fora do corpo. No diário de sonhos, aparecia claramente uma ambigüidade em que o lado mais destrutivo foi tomando conta. Sendo assim, só me resta concluir que ela, durante uma crise de sonambulismo, se matou, mas não antes sem lutar contra ela mesma.
- Não tem culpado?
- Só se culparmos a faculdade por não amadurecer o tema de monografia com ela; o namorado por não fazê-la esquecer o tema e/ou de brincar com o que era muito sério pra ela e a família por não perceber o conflito da filha e agir como se nada estivesse acontecendo.
- Então foi suicídio?
- Sim e não.
- Mas e o papel do diário que ela segurava? Parecia um bilhete suicida.
- A data foi de 1 semana antes da queda.
- Poderia ter se enganado.
- Duvido muito, tem uma seqüência de sonhos depois. Aquele trecho foi um sonho premonitório. Ela agarrou aquilo antes de dormir prevendo algo, ou mesmo sonâmbula, talvez até pra dar uma pista do que estava acontecendo.
- Pega a sua promissória e some daqui!

Saí dali satisfeito por ter resolvido o caso e de não satisfazer os desígnios das autoridades e seus limites institucionais, pra dizer o mínimo.

Vi uma academia que tinha aula de ioga perto de onde moro. Fiz a inscrição. Durante a aula, eu paquerava a professora. Porra, milhões de anos de espiritualidade oriental e eu aqui com azarações bossalossáuricas.


               

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