Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

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25.3.11

Resiliência Atemporal

Começo a palestra sobre minha teoria da unificação. Olho pra minha esposa, bela e sorridente e pros meus 3 filhos belos e sorridentes. Ela, diretora de uma ONG especializada em tolerância espiritual, promovendo o ecumenismo religioso entre nações bélicas. As 2 meninas, uma formada em direito, a outra em literatura. O menino, engenheiro especializado em desenvolvimento sustentável. E eu, físico, PhD em filosofia.

Sim, acredito em uma teoria da unificação da física a partir das relações entre o emaranhamento quântico e o nível macro, relativista, da matéria. Como a palestra tem caráter divulgatório, leigos, jornalistas etc., estão presentes. Todos estão fazendo um ar que entendem tudo e, sobretudo, concordam comigo. Minha teoria foi publicada nas melhores revistas científicas mundiais e em artigos em jornais, também em todo o mundo. Sou, por assim dizer, um sucesso. Completo.

Um senhor, gordo, calvo, suado (apesar do ar-condicionado), com barba por fazer e terno amarrotado, com várias canetas no bolso, levanta a mão pra fazer uma questão:

- O senhor, pelo que li em seus artigos, não tem uma base matemática para fazer a relação conceitual que é a base de sua teoria. Resta-me concluir que ela é apenas uma hipótese, sem nenhuma chance recente de ser provada, em função dos limites atuais tecnológico dos aceleradores de partículas. Além disso, existe uma certa semelhança com os twistors, que o senhor não cita, mas que tem uma base matemática superior a sua.

Silêncio absoluto. As pessoas na plateia esperam minha resposta. Suo frio. Acabo dizendo Ora, temos um apressadinho na plateia e todos riem, um pouco nervosos, compactuados comigo. Não olho mais pra aquele senhor, não consigo, não quero saber. Respondo rápido a uma pergunta de um jornalista, perguntando uma bobagem típica sobre a relação de minha teoria coma existência de Deus...

Finda a palestra, minha esposa me beija, me elogiando e meus filhos vêm me abraçar. Congratulações eufóricas de anônimos, amigos, acadêmicos, como se a minha fala tivesse mudado suas vidas... até a próxima confererência. Nada disso me afeta, diferente de antes, o alimento necessário de meu ego. Só penso na fala daquele senhor meio bizarro. No fundo, sei que ele tem toda a razão.

Na volta pra casa, dirijo ouvindo minha esposa falar sobre as vítimas sofridas em algum país qualquer, não consigo prestar atenção. então rouqueio uma frase pré-formada que coisa horrível, isso é a planeta se vingando etc. Apenas reparo da janela do carro, em uma mendiga, bonita e suja, deslocada pela beleza da miséria em seu entorno, velhos, imundície, doença e lixo.

Não consigo dormir. Saio da cama, tomo um copo de leite, não adianta nada. Pego as chaves e, de pijama, saio em busca da mendiga.

No lugar que ela estava, ou pensava estar, ela não se encontrava. Dirijo pelos quarteirões próximos, procurando-a. Nada. Desço e pergunto por ela. Os mendigos respondem que não sabem. Não trouxe dinheiro, não posso estimulá-los.

Saio do carro e espero, sentado. A espera da mendiga.

Acordo com uma briga, dela com uma outra, talvez por um objeto, talvez uma peça de roupa. Aparto a briga, protegendo-a:

- Qualé a sua, é outro daqueles tarado?

Não, só tô aqui pra...

- Pra quê, porra?

Eu... não sei...

- Cada um que me aparece...

Como é o seu nome?

- Não te interessa!

Tudo bem. Você mora por aqui?

- Aqui, ali. Vou vivendo.

Acho isso tão fascinante. Olho pro jeito dela, desleixadamente paranoico. Me encanto.

- Cê tem dinheiro aí, gringo?

Eu não sou gringo.

- Pra mim é. Cê vive em outro mundo.

Isso é verdade. Respondo: não tenho dinheiro aqui, talvez eu tenha algum cartão no carro. Posso ir pegar.

- Então pega, ué!

Vamos conversando, acho um cartão que uso pouco, compro sanduíches e comemos e bebemos na rua mesmo. Ela conta toda a sua vida, estupros, pobreza, abandono. Eu falo da minha, ela quase ignora. Olho pra liberdade dela, lembro da minha teoria aceita e furada ao mesmo tempo e choro. Choro engasgado, convulsionado, sôfrego. Deito no colo da minha... amiga(?), que me faz um trôpego e áspero cafuné. Meu choro deságua em desejo e começamos a beijar e transar, ardentemente. Pela primeira vez, sinto o mundo se encerrar no momento, chego a levar um chute no rim de algum jovem transeunte bêbado, mas isso, estranhamente, só aumenta o meu prazer. Lembro vagamente do amor de hora marcada da minha esposa, que desaparece diante da volúpia suja, amarga e ocasional da minha parceira. Dormimos ali, sem nada, muito menos esperança. No dia seguinte, o beijo de hálito dela me desperta, pro dia e pra vida. Andamos pela cidade. Vou a lugares que nunca fui, meu rim dói, estou fedendo calçada. Algumas pessoas nos dão moedas, mães tiram as crianças de perto da gente, o que me dá alívio. Ficamos dias ao relento, recorrendo ao cartão pra comer, tomamos banho no chafariz, corremos da polícia, porque eu deixei meu pinto de fora. Ela gargalhou e isso me fazia transbordar de felicidade.

Acordei e não a vi. Não me senti só, a irmandade de mendigos virtualmente me acompanhava, as ruas eram nossas, apesar da polícia e alguns outros sonharem o contrário. As ruas são nossas. Somos os avatares da liberdade.

Olho um jornal velho. As mesmas notícias, personagens um pouco diferentes. Aquele mundo do jornal agora me era estranho, falso.

Acaba o dinheiro do cartão, o meu carro não está mais no local. Começo a viver exclusivamente da mendicância. Não me preocupo com nada, sou nada. Não imagino algo melhor. Passo por um restaurante que frequentava e vejo alguns conhecidos sorrindo, simulando assuntos para entreter o vazio. O vazio, quisera eles um dia saber, não é pra ser entretido, é pra ser assimilado, ou algo assim.

Não tenho mais noção de tempo, apenas reparo no decorrer de dias, sóis, chuvas e ventos. Mudo de bairro como mudava de cuecas. Alimento-me de tudo, repolhos estragados, restos de atum; meus dentes apodrecem, me fazendo sentir verdadeiro, Natural.

Do lado de fora de um bar, danço a música que um violão benditamente mau tocado, sem técnicas, emite. Danço fora do compasso da música, mas no compasso do meu ser-não-ser. Algumas pessoas riem de mim, eu rio delas, internamente. Fico bem de barba, isso é o que interessa. A dança me traz plenitude, me funde à cidade. Mais tarde, canto raps com outros colegas de mendicância. Aquelas letras eram tão estúpidas antes, hoje são rimas óbvias que me ressoam com colegas de todo o universo-cidade-bairro-fraternidade.

Fico doente, meu corpo todo dói. A dor não é algo a ser eliminado, é estupência pura do ato de viver. Vivo a dor simplesmente, até que um dia ela pára, junto com a sopa rala que consigo de uma lanchonete. Vejo que meus passos estão mais lentos, que minha visão inverte figura-fundo. Vejo o mundo como vejo, quase sem camadas culturais, sem a babaquice milenar de colocar chifre em cabeça de cavalo: marxismo, capitalismo, hinduísmo, erotismo, heroísmo, mecanicismo; de ismo em ismo a humanidade perece enquanto pulgas chacoalhadas pelo cachorro Terra em alguma tsunami. Algum câncer. Alguma mediocridade.

Vejo na vitrine a TV emitindo novela. O suco de laranja é o elemento em cena de maior autenticidade. Vejo a família que será feliz no último capítulo, chorando por algum drama suburbano, provavelmente um amor heterossexual provisoriamente desfeito, escrito por um gay que vai ditar pra nação como o romantismo deve ser pateticamente exercido. O cinema também tem um problema ressoante: escrito por seres judaico-pudicos, para pós-selvagens cindidos entre uma presidência negra de cultura branca e cidadãos klu klux klan assumidos e/ou imprecisos. Lembro que tive família, pessoas que co-habitam fingindo que isso elimina solidão. Vou em direção à minha outrora casa, antes que abandone de vez a palavra. Não por saudade, mas por louvor ao puro fluxar. Saudade é um vício linear de quem não vive o atemporal.

4 comentários:

Carol G. disse...

Uh! Nas profundezas do mar sem fim..
Durante a leitura de seu mais novo texto, me lembrei de uma música primeiro e depois de um filme: "Se eu quiser falar com Deus" (Gil)e, em especial dos trechos "..se eu quiser falar com Deus, tenho que ficar a sós/..ter a alma e o corpo nus/..tenho que comer o pão que o diabo amassou/tenho que virar um cão/..que lamber o chão/.. tenho que dizer adeus,decidido, pela estrada que ao findar vai dar em nada, nada, nada, nada.."e "Island Impire", a última insanidade de Lynch que alterna momentos frenéticos e plácidos, levando o espectador a um estado de angústia,incômodo mas também de sentir a alma lavada!
Não nessa ordem, senti-me assim lendo suas linhas :)

A lucidez do palestrante é incrível!Me comoveu quando pôde declarar seus desejos e anseios, sem medo(?), sem moral, sem amarras.

Mas saudade é um vício? Será? Mesmo nesse sentido que você colocou..?
Fiquei imaginando que o apego do palestrante e uma dose de saudosismo fez com que ele se libertasse para "simplesmente" desejar.

beijos

Nelson Job disse...

Adoro a música do Gil, mas antes de escrever, com o esboço da idéia, fiquei meio preocupado de ser meio "De olhos bem fechados", mas ao escrever achei que tinha um jeito d`"A 3a Margem do Rio", mas no ponto de vista perdido do pai. Eu, meio perversamente, me desresponsabilizo pelas opiniões dos personagens (!), mas, a saudade talvez seja um vício sensório-motor que sempre remete ao passado/Paraíso Perdido ao invéns de apreender todo o virtual...
Muto obrigado, Carol, pela sua leitura cuidadosa.
Bj

RESEDÁ disse...

A música de Gil é uma boa referência.
Parece que para encontrarmos a liberdade (o Nada) é preciso que percamo-nos de vista para depois encontramo-nos em outro que nem a saudade conseguirá abraçar.
Tenho esperança!

Nelson Job disse...

É, a redenção pode estar em qualquer lugar, qualquer ínfima situação que cativa alguma epifania possível. Cultivemos a esperança, não como o ato de espera sem fim, mas como ações (in)constantes que cultivam Ética. Obrigado pelo comentário!