Concebi-me outrora personagem.
Aquele personagem assim, de mim mesmo, quero dizer. Foi quando, em uma
conversa, acho que no bar... ou em uma festa, não lembro bem, disse com tanta
convicção alguma coisa, e todos me olharam com seriedade, levando-me a sério muito
mais que eu próprio. Vi-me farsante, suscitando em mim o que não havia, carente
eu de convicções, forjei-as, cultivei-as como se minhas fossem. Outros
apareceram em mim, achei até pior. No cinema, um filme que achei bobo, mas que
todos riam, fiz-me rir até chorar, gargalhava, mas a beira do pânico, poucos
sabiam. Quando Xândria adoeceu gravemente, me fiz triste, triste; era consolado
a todo canto e ria por dentro (só às vezes, pensando bem) da piedade alheia.
Entediei-me no trabalho, apesar de ser considerado “o empregado do ano”. Grandes
merda...
Sentia crescer em mim um
assassino, um manipulador de massas, um ditador. Tornavam-se verdades efêmeras.
Como é poder matar sem culpa? Experimentei ser alguém que não tivesse essa
culpa, por alguns momentos. Um mundo todo, sem ética, se abriu pra mim, um véu
total caiu. Vislumbrei esse mundo, em que meus atos poderiam forjar de repente. É
essa a sensação daqueles que, simplesmente, desistem das convenções sociais. Mas,
ainda que supostamente livre, senti que a liberdade ainda maior não
dependia de poder fazer qualquer coisa com o outro, mas ser-me plenamente. E aí
não há destruição alguma sequer, apenas quase-desconexões que formam outras
conexões mais consistentes.
As dores que sinto, as alegrias
que compartilho, as dúvidas e insights; as simpatias e antipatias... todos
cambiantes, tangentes, ineficazes? Vi que não era um personagem, mas que eu
fingia ser um farsante. Crio e me recrio ao sabor dos vetores de existência,
minha suposta crise existencial é apenas um alento (desnecessário?) na ausência
de conceber o insofismável: crio-me o tempo todo, a criação não tem sentido
aparente, apesar de depois, eu olho pra trás e vislumbro uma narrativa,
narrativa essa de mim mesmo, da minha – por assim dizer – vida. Finjo ser
farsante para mim – sei que não sou aquilo, mas serei, sendo-o já, um
pouquinho. O criador é criatura, dão-se as mãos univitelinas para se abandonar
na próxima criação. Assusto a todos de soslaio, mas apenas eu sei porquê. Por
que tenho agora a consciência de que somos o que criamos praquilo. Geralmente,
as pessoas se enxergam como um amálgama simples de emoções e memórias, suas
nuances de outros seres em si são sufocados pelo hábito, pela rotina,
ilusionando a continuidade retilínea de suas vidas. Não percebem a usina
criadora que enxurra. Por isso comecei a incomodar. Não por me acharem
farsante, mas porque quando eu deixei de fingir ser farsante pra exercer a plenitude
dos eus em sequência e até sobrepostos, identificando a rehumanidade do mundo, expresso o torpor da identidade.
Assustei-me, chorei-me e ri-me. Eis que sempre fora assim, assado. Mas as contas a pagar em seu nome, o álbum de fotos, a tosca memória criou um elo frágil,
que se rompe nos desentendimentos do cotidiano. Amigos me dizem que eu “não era
assim”. Ora, nunca fui, se sou outro; e pasmem: vocês também! Não que me sinta
sozinho nesta constatação. Tem um personagem que aparece em cada um que sabe
disso, mas esse personagem tem por crise passar. Mas o atrator que sou, mantém
geralmente a consciência que só finjo ser farsante. Ou antes eu era assim.
Um comentário:
Esse texto parecia perfeito para ilustrar o que foi falado hoje, no grupo..entre outras coisas, o processo de criação, né?
Mto legal vc escrevendo :)adoro o Druam!
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